LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO QUARTO
 

64
«Entram no Estreito Pérsico, onde dura
Da confusa Babel inda a memória;
Ali co Tigre o Eufrates se mistura,
Que as fontes onde nascem têm por glória.
Dali vão em demanda da água pura
(Que causa inda será de larga história)
Do Indo, pelas ondas do Oceano,
Onde não se atreveu passar Trajano.

65
«Viram gentes incógnitas e estranhas
Da Índia, da Carmânia e Gedrosia,
Vendo vários costumes, várias manhas,
Que cada região produze e cria.
Mas de vias tão ásperas, tamanhas,
Tornar-se facilmente não podia.
Lá morreram, enfim, e lá ficaram,
Que à desejada pátria não tornaram.

66
«Parece que guardava o claro Céu
A Manuel e seus merecimentos
Esta empresa tão árdua, que o moveu
A subidos e ilustres movimentos;
Manuel, que a Joane sucedeu
No Reino e nos altivos pensamentos,
Logo como tomou do Reino cargo,
Tomou mais a conquista do mar largo.

67
«O qual, como do nobre pensamento
Daquela obrigação que lhe ficara
De seus antepassados, cujo intento
Foi sempre acrecentar a terra cara,
Não deixasse de ser um só momento
Conquistado, no tempo que a luz clara
Foge, e as estrelas nítidas que saem
A repouso convidam quando caem,

68
«Estando já deitado no áureo leito,
Onde imaginações mais certas são,
Revolvendo contino no conceito
De seu ofício e sangue a obrigação,
Os olhos lhe ocupou o sono aceito,
Sem lhe desocupar o coração;
Porque, tanto que lasso se adormece,
Morfeu em várias formas lhe aparece.

69
«Aqui se lhe apresenta que subia
Tão alto que tocava à prima Esfera,
Donde diante vários mundos via,
Nações de muita gente, estranha e fera.
E lá bem junto donde nace o dia,
Despois que os olhos longos estendera,
Viu de antigos, longincos e altos montes
Nacerem duas claras e altas fontes.

70
«Aves agrestes, feras e alimárias
Pelo monte selvático habitavam;
Mil árvores silvestres e ervas várias
O passo e o trato às gentes atalhavam.
Estas duras montanhas, adversárias
De mais conversação, por si mostravam
Que, dês que Adão pecou aos nossos anos,
Não as romperam nunca pés humanos.

71
«Das águas se lhe antolha que saíam,
Par' ele os largos passos inclinando,
Dous homens, que mui velhos pareciam,
De aspeito, inda que agreste, venerando.
Das pontas dos cabelos lhe saíam
Gotas, que o corpo todo vão banhando;
A cor da pele, baça e denegrida;
A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.

72
«D'ambos de dous a fronte coroada
Ramos não conhecidos e ervas tinha.
Um deles a presença traz cansada,
Como quem de mais longe ali caminha;
E assi a água, com ímpeto alterada,
Parecia que doutra parte vinha,
Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa
Vai buscar os abraços de Aretusa.

73
«Este, que era o mais grave na pessoa,
Destarte pera o Rei de longe brada:
– «Ó tu, a cujos reinos e coroa
Grande parte do mundo está guardada,
Nós outros, cuja fama tanto voa,
Cuja cerviz bem nunca foi domada,
Te avisamos que é tempo que já mandes
A receber de nós tributos grandes.

74
«Eu sou o ilustre Ganges, que na terra
Celeste tenho o berço verdadeiro;
Estoutro é o Indo, Rei que, nesta serra
Que vês, seu nascimento tem primeiro.
Custar-t' -emos contudo dura guerra;
Mas, insistindo tu, por derradeiro,
Com não vistas vitórias, sem receio
A quantas gentes vês porás o freio.»