78
Que mande da fazenda, enfim, lhe manda
Que nos Reinos Gangéticos faleça,
S'algũa traz idónea lá da banda
Donde a terra se acaba e o mar começa.
Já da real presença veneranda
Se parte o Capitão, pera onde peça
Ao Catual que dele tinha cargo,
Embarcação, que a sua está de largo.
79
Embarcação que o leve às naus lhe pede,
Mas o mau Regedor, que novos laços
Lhe maquinava, nada lhe concede,
Interpondo tardanças e embaraços.
Co ele parte ao cais, por que o arrede
Longe quanto puder dos régios paços,
Onde, sem que seu Rei tenha notícia,
Faça o que lhe ensinar sua malícia.
80
Lá bem longe lhe diz que lhe daria
Embarcação bastante em que partisse,
Ou que pera a luz crástina do dia
Futuro, sua partida diferisse.
Já com tantas tardanças entendia
O Gama que o Gentio consentisse
Na má tenção dos Mouros, torpe e fera,
O que dele até' li não entendera.
81
Era este Catual um dos que estavam
Corrutos pela Maumetana gente,
O principal por quem se governavam
As cidades do Samorim potente.
Dele sòmente os Mouros esperavam
Efeito a seus enganos torpemente;
Ele, que no concerto vil conspira,
De suas esperanças não delira.
82
O Gama com instância lhe requer
Que o mande pôr nas naus, e não lhe val;
E que assi lho mandara, lhe refere,
O nobre sucessor de Perimal.
Por que razão lhe impede e lhe difere
A fazenda trazer de Portugal?
Pois aquilo que os Reis já têm mandado
Não pode ser por outrem derrogado.
83
Pouco obedece o Catual corruto
A tais palavras; antes, revolvendo
Na fantasia algum sutil e astuto
Engano diabólico e estupendo,
Ou como banhar possa o ferro bruto
No sangue avorrecido, estava vendo,
Ou como as naus em fogo lhe abrasasse,
Por que nenhũa à pátria mais tornasse.
84
Que nenhum torne à pátria só pretende
O conselho infernal dos Maumetanos,
Por que não saiba nunca onde se estende
A terra Eoa o Rei dos Lusitanos.
Não parte o Gama, enfim, que lho defende
O Regedor dos Bárbaros profanos;
Nem sem licença sua ir-se podia,
Que as almadias todas lhe tolhia.
85
Aos brados e razões do Capitão
Responde o Idolátra, que mandasse
Chegar à terra as naus, que longe estão,
Por que milhor dali fosse e tornasse.
– «Sinal é de inimigo e de ladrão
Que lá tão longe a frota se alargasse,
(Lhe diz), porque do certo e fido amigo
É não temer do seu nenhum perigo.»
86
Nestas palavras o discreto Gama
Enxerga bem que as naus deseja perto
O Catual, por que com ferro e flama
Lhas assalte, por ódio descoberto.
Em vários pensamentos se derrama;
Fantasiando está remédio certo
Que desse a quanto mal se lhe ordenava;
Tudo temia, tudo, enfim, cuidava.
87
Qual o reflexo lume do polido
Espelho de aço ou de cristal fermoso,
Que, do raio solar sendo ferido,
Vai ferir noutra parte, luminoso,
E, sendo da ouciosa mão movido,
Pela casa, do moço curioso,
Anda pelas paredes e telhado
Trémulo, aqui e ali, e dessossegado:
88
Tal o vago juízo fluctuava
Do Gama preso, quando lhe lembrara
Coelho, se por acaso o esperava
Na praia cos batéis, como ordenara.
Logo secretamente lhe mandava
Que se tornasse à frota, que deixara,
Não fosse salteado dos enganos
Que esperava dos feros Maumetanos. |