LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO NONO
 

67
Alguns, que em espingardas e nas bestas
Pera ferir os cervos, se fiavam,
Pelos sombrios matos e florestas
Determinadamente se lançavam;
Outros, nas sombras, que de as altas sestas
Defendem a verdura, passeavam
Ao longo da água, que, suave e queda,
Por alvas pedras corre à praia leda.

68
Começam de enxergar subitamente,
Por entre verdes ramos, várias cores,
Cores de quem a vista julga e sente
Que não eram das rosas ou das flores,
Mas da lã fina e seda diferente,
Que mais incita a força dos amores,
De que se vestem as humanas rosas,
Fazendo-se por arte mais fermosas.

69
Dá Veloso, espantado, um grande grito:
– «Senhores, caça estranha (disse) é esta!
Se inda dura o Gentio antigo rito,
A Deusas é sagrada esta floresta.
Mais descobrimos do que humano esprito
Desejou nunca, e bem se manifesta
Que são grandes as cousas e excelentes
Que o mundo encobre aos homens imprudentes.

70
«Sigamos estas Deusas e vejamos
Se fantásticas são, se verdadeiras.»
Isto dito, veloces mais que gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
Se deixam ir dos galgos alcançando.

71
De ũa os cabelos de ouro o vento leva,
Correndo, e da outra as fraldas delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
Nas alves carnes, súbito mostradas.
Ũa de indústria cai, e já releva,
Com mostras mais macias que indinadas,
Que sobre ela, empecendo, também caia
Quem a seguiu pela arenosa praia.

72
Outros, por outra parte, vão topar
Com as Deusas despidas, que se lavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam;
Ũas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando;

73
Outra, como acudindo mais depressa
À vergonha da Deusa caçadora,
Esconde o corpo n' água; outra se apressa
Por tomar os vestidos que tem fora.
Tal dos mancebos há que se arremessa,
Vestido assi e calçado (que, co a mora
De se despir, há medo que inda tarde)
A matar na água o fogo que nele arde.

74
Qual cão de caçador, sagaz e ardido,
Usado a tomar na água a ave ferida,
Vendo [ò] rosto o férreo cano erguido
Pera a garcenha ou pata conhecida,
Antes que soe o estouro, mal sofrido
Salta n' água e da presa não duvida,
Nadando vai e latindo: assi o mancebo
Remete à que não era irmã de Febo.

75
Leonardo, soldado bem disposto,
Manhoso, cavaleiro e namorado,
A quem Amor não dera um só desgosto
Mas sempre fora dele mal tratado,
E tinha já por firme pros[s]uposto
Ser com amores mal afortunado,
Porém não que perdesse a esperança
De inda poder seu fado ter mudança,

76
Quis aqui sua ventura que corria
Após Efire, exemplo de beleza,
Que mais caro que as outras dar queria
O que deu, pera dar-se, a natureza.
Já cansado, correndo, lhe dizia:
– «Ó formosura indina de aspereza,
Pois desta vida te concedo a palma,
Espera um corpo de quem levas a alma!

77
«Todas de correr cansam, Ninfa pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu só de mi só foges na espessura?
Quem te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela ventura
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia.