LUIZ VAZ DE CAMÕES
"Os Lusíadas"
CANTO DÉCIMO
 

45
Mais estanças cantara esta Sirena
Em louvor do ilustríssimo Albuquerque,
Mas alembrou-lhe ũa ira que o condena,
Posto que a fama sua o mundo cerque.
O grande Capitão, que o fado ordena
Que com trabalhos glória eterna merque,
Mais há-de ser um brando companheiro
Pera os seus, que juiz cruel e inteiro.

46
Mas em tempo que fomes e asperezas,
Doenças, frechas e trovões ardentes,
A sazão e o lugar, fazem cruezas
Nos soldados a tudo obedientes,
Parece de selváticas brutezas,
De peitos inumanos e insolentes,
Dar extremo suplício pela culpa
Que a fraca humanidade e Amor desculpa.

47
Não será a culpa abominoso incesto
Nem violento estupro em virgem pura,
Nem menos adultério desonesto,
Mas cũa escrava vil, lasciva e escura,
Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,
Ou de usado a crueza fera e dura,
Cos seus ũa ira insana não refreia,
Põe, na fama alva, noda negra e feia.

48
Viu Alexandre Apeles namorado
Da sua Campaspe, e deu-lha alegremente,
Não sendo seu soldado exprimentado,
Nem vendo-se num cerco duro e urgente.
Sentiu Ciro que andava já abrasado
Araspas, de Panteia, em fogo ardente,
Que ele tomara em guarda, e prometia
Que nenhum mau desejo o venceria;

49
Mas, vendo o ilustre Persa que vencido
Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa,
Levemente o perdoa, e foi servido
Dele num caso grande, em recompensa.
Per força, de Judita foi marido
O férreo Balduíno; mas dispensa
Carlos, pai dela, posto em cousas grandes,
Que viva e povoador seja de Frandes.

50
Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto,
De Soares cantava, que as bandeiras
Faria tremular e pôr espanto
Pelas roxas Arábicas ribeiras:
– «Medina abominábil teme tanto,
Quanto Meca e Gidá, co as derradeiras
Praias de Abássia; Barborá se teme
Do mal de que o empório Zeila geme.

51
«A nobre ilha também de Taprobana,
Já pelo nome antigo tão famosa
Quanto agora soberba e soberana
Pela cortiça cálida, cheirosa,
Dela dará tributo à Lusitana
Bandeira, quando, excelsa e gloriosa,
Vencendo se erguerá na torre erguida,
Em Columbo, dos próprios tão temida.

52
«Também Sequeira, as ondas Eritreias
Dividindo, abrirá novo caminho
Pera ti, grande Império, que te arreias
De seres de Candace e Sabá ninho.
Maçuá, com cisternas de água cheias
Verá, e o porto Arquico, ali vizinho;
E fará descobir remotas Ilhas,
Que dão ao mundo novas maravilhas.

53
«Virá despois Meneses, cujo ferro
Mais na África, que cá, terá provado;
Castigará de Ormuz soberba o erro,
Com lhe fazer tributo dar dobrado.
Também tu, Gama, em pago do desterro
Em que estás e serás inda tornado,
Cos títulos de Conde e d' honras nobres
Virás mandar a terra que descobres.

54
«Mas aquela fatal necessidade
De quem ninguém se exime dos humanos,
Ilustrado co a Régia dignidade,
Te tirará do mundo e seus enganos.
Outro Meneses logo, cuja idade
É maior na prudência que nos anos,
Governará; e fará o ditoso Henrique
Que perpétua memória dele fique.

55
«Não vencerá sòmente os Malabares,
Destruindo Panane com Coulete,
Cometendo as bombardas, que, nos ares,
Se vingam só do peito que as comete;
Mas com virtudes, certo, singulares,
Vence os imigos d' alma todos sete;
De cobiça triunfa e incontinência,
Que em tal idade é suma de excelência.