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LUIZ VAZ DE CAMÕES
Junto de um seco, fero e estéril monte

 

Junto de um seco, fero e estéril monte,

inútil e despido, calvo, informe,

da natureza em tudo aborrecido;

onde nem ave voa, ou fera dorme,

nem rio claro corre, ou ferve fonte,

nem verde ramo faz doce ruído;

cujo nome, do vulgo introduzido

é felix, por antífrase, infelice;

o qual a Natureza

situou junto à parte

onde um braço de mar alto reparte

Abássia, da arábica aspereza,

onde fundada já foi Berenice,

ficando a parte donde

o sol que nele ferve se lhe esconde;

nele aparece o Cabo com que a costa

africana, que vem do Austro correndo,

limite faz, Arómata chamado

(Arómata outro tempo, que, volvendo

os céus, a ruda língua mal composta,

dos próprios outro nome lhe tem dado).

Aqui, no mar, que quer apressurado

entrar pela garganta deste braço,

me trouxe um tempo e teve

minha fera ventura.

Aqui, nesta remota, áspera e dura

parte do mundo, quis que a vida breve

também de si deixasse um breve espaço,

porque ficasse a vida

pelo mundo em pedaços repartida.

Aqui me achei gastando uns tristes dias,

tristes, forçados, maus e solitários,

trabalhosos, de dor e d'ira cheios,

não tendo tão somente por contrários

a vida, o sol ardente e águas frias,

os ares grossos, férvidos e feios,

mas os meus pensamentos, que são meios

para enganar a própria natureza,

também vi contra mi

trazendo-me à memória

algüa já passada e breve glória,

que eu já no mundo vi, quando vivi,

por me dobrar dos males a aspereza,

por me mostrar que havia

no mundo muitas horas de alegria.

Aqui estiv'eu co estes pensamentos

gastando o tempo e a vida; os quais tão alto

me subiam nas asas, que cala

(e vede se seria leve o salto!)

de sonhados e vãos contentamentos

em desesperação de ver um dia.

Aqui o imaginar se convertia

num súbito chorar, e nuns suspiros

que rompiam os ares.

Aqui, a alma cativa,

chagada toda, estava em carne viva,

de dores rodeada e de pesares,

desamparada e descoberta aos tiros

da soberba Fortuna;

soberba, inexorável e importuna.

Não tinha parte donde se deitasse,

nem esperança algüa onde a cabeça

um pouco reclinasse, por descanso.

Todo lhe he dor e causa que padeça,

mas que pereça não, porque passasse

o que quis o Destino nunca manso.

Oh! que este irado mar, gritando, amanso!

Estes ventos da voz importunados,

parece que se enfreiam!

Somente o Céu severo,

as Estrelas e o Fado sempre fero,

com meu perpétuo dano se recreiam,

mostrando-se potentes e indignados

contra um corpo terreno,

bicho da terra vil e tão pequeno.

Se de tantos trabalhos só tirasse

saber inda por certo que algu'hora

lembrava a uns claros olhos que já vi;

e se esta triste voz, rompendo fora,

as orelhas angélicas tocasse

daquela em cujo riso já vivi;

a qual, tornada um pouco sobre si,

revolvendo na mente pressurosa

os tempos já passados

de meus doces errores,

de meus suaves males e furores,

por ela padecidos e buscados,

tornada (inda que tarde) piadosa,

um pouco lhe pesasse

e consigo por dura se julgasse;

isto só que soubesse, me seria

descanso para a vida que me fica;

co isto afagaria o sofrimento.

Ah! Senhora, Senhora, que tão rica

estais, que cá tão longe, de alegria,

me sustentais cum doce fingimento!

Em vos afigurando o pensamento,

foge todo o trabalho e toda a pena.

Só com vossas lembranças

me acho seguro e forte

contra o rosto feroz da fera Morte,

e logo se me ajuntam esperanças

com que a fronte, tornada mais serena,

torna os tormentos graves

em saudades brandas e suaves.

Aqui co elas fico, perguntando

aos ventos amorosos, que respiram

da parte donde estais, por vós, Senhora;

às aves que ali voam, se vos viram,

que fazíeis, que estáveis praticando,

onde, como, com quem, que dia e que hora.

Ali a vida cansada, que melhora,

toma novos espritos , com que vença

a Fortuna e Trabalho,

só por tornar a vervos ,

só por ir a servir-vos e querer-vos.

Diz-me o Tempo, que a tudo dará talho;

mas o Desejo ardente, que detença

nunca sofreu, sem tento

m'abre as chagas de novo ao sofrimento.

Assi vivo; e se alguém te perguntasse,

Canção, como não mouro,

podes-lhe responder que porque mouro.
 
 
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>LUIZ VAZ DE CAMÕES