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LUIZ VAZ DE CAMÕES
Aquela que de amor descomedido

 

D. António de Noronha,
estando o Autor na India

 

Aquela que de amor descomedido

pelo fermoso moço se perdeu

que só por si de amores foi perdido,

despois que a deusa em pedra a converteu

de seu humano gesto verdadeiro,

a última vez só lhe concedeu.

assi meu mal do próprio ser primeiro

outra cousa nenhüa me consente

que este canto que escrevo derradeiro.

E se algüa pouca vida, estando ausente,

me deixa Amor, é porque o pensamento

sinta a perda do bem de estar presente.

Senhor, se vos espanta o sentimento

que tenho em tanto mal, para escrevê-lo

furto este breve tempo a meu tormento.

Porque quem tem poder para sofrê-lo,

sem se acabar a vida co cuidado,

também terá poder para dize-lo.

Nem eu escrevo mal tão costumado,

mas n'alma minha, triste e saudosa,

a saudade escreve, e eu traslado.

Ando gastando a vida trabalhosa,

espalhando a continua saudade

ao longo de ua praia saudoso.

Vejo do mar a instabilidade,

como com seu ruído impetuoso

retumba na maior concavidade.

E com sua branca escuma, furioso,

na terra, a seu pesar, lhe está tomando

lugar onde se estenda, cavernoso.

Ela, como mais fraca, lhe está dando

as côncavas entranhas, onde esteja

suas salgadas ondas espalhando.

A todas estas cousas tenho enveja

tamanha, que não sei determinar-me,

por mais determinado que me veja.

Se quero em tanto mal desesperar-me,

não posso, porque Amor e Saudade,

nem licença me dão para matar-me.

As vezes cuido em mim se a novidade

e estranheza das cousas, co a mudança

se poderão mudar üa vontade.

E com isto afiguro na lembrança

a nova terra, o novo trato humano,

a estrangeira gente e estranha usança.

Subo-me ao monte que Hércules tebano

do altíssimo Calpe dividiu,

dando caminho ao mar Mediterrano.

Dali estou tenteando aonde viu

o pomar das Hespéridas, matando

a serpe que a seu passo resistiu.

Em outra parte estou afigurando

o poderoso Anteu que, derrubado,

mais força se lhe estava acrescentando;

mas do hercúleo braço sojugado, n

o ar deixou a vida, não podendo

da madre terra já ser ajudado.

Nem com isto, enfim, que estou dizendo,

nem com as armas tão continuadas,

de lembranças passadas me defendo.

Todas as cousas vejo remudadas,

porque o tempo ligeiro não consente

que estejam de firmeza acompanhadas.

Vi já que a Primavera, de contente,

de mil cores alegres revestia

o monte, o rio, o campo alegremente.

Vi já das altas aves a harmonia,

que até aos montes duros convidava

a um modo suave de alegria.

Vi já que tudo, enfim, me contentava,

e que, de muito cheio de firmeza,

um mal por mil prazeres não trocava.

Tal me tem a mudança e estranheza

que, se vou pelos campos, a verdura,

parece que se seca, de tristeza.

Mas isto é já costume da ventura;

que os olhos que vivem descontentes,

descontente o prazer se lhe afigura.

Ó graves e insofríveis acidentes

de Fortuna e de Amor que a penitência

tão grave dais aos peitos inocentes!

Não basta exprimentar-me a paciência,

com temores e falsas esperanças,

sem que também me atente o mel de ausência?

Trazeis um brando animo em mudanças,

para que nunca possa ser mudado

de lágrimas, suspiros e lembranças.

E se estiver ao mal acostumado,

também no mal não consentis firmeza,

para que nunca viva descansado.

Vivia eu sossegado na tristeza,

e ali não me faltava um brando engano,

que tirasse os desejos da fraqueza.

E vendo-me enganado estar ufano,

deu à roda Fortuna, e deu comigo

onde de novo choro o novo dano.

Já deve de bastar o que aqui digo

para dar a entender o mais que calo,

a quem já viu tão áspero perigo.

E se nos bravos peitos faz abalo

um peito magoado e descontente,

que obriga a quem o ouve a consolá-lo;

não quero mais senso que largamente,

Senhor, me mandeis novas dessa terra:

ao menos poderei viver contente.

Porque se o duro Fado me desterra,

tanto tempo do bem que o fraco esprito

desampare a prisão onde se encerra,

ao som das negras águas de Cocito,

ao pé dos carregados arvoredos

cantarei o que na alma tenho escrito.

E, por entre esses hórridos penedos,

a quem negou Natura o claro dia,

entre tormentos ásperos e medos,

com a trémula voz, cansada e fria,

celebrarei o gesto claro e puro

que nunca perderei da fantasia.

E o músico de Trácia, já seguro

de perder sua Eurídice, tangendo

me ajudará, ferindo o ar escuro.

As namoradas sombras, revolvendo

memórias do passado, me ouvirão;

e com seu choro, o rio irá crescendo.

Em Salmoneu as penas faltarão,

e das filhas de Belo, juntamente,

de lágrimas os vasos se encherão.

Que se o amor não se perde em vida ausente,

menos se perderá por morte escura;

porque, enfim, a alma vive eternamente,

e amor é afeito d'alma, e sempre dura.

 

 
 
>>>>>>>>>>>>>>>>>>>LUIZ VAZ DE CAMÕES