Augusto Guimaraes Cavalcanti

PARA SE LER AO MEIO-DIA

Flash

E agora o relógio transbordando madrugada,
Todas as tomadas estão desocupadas,
Todos os piratas estão afogados todos os violinos estão quebrados.

Madrugada desligada,
Esquecer as chaves em algum bolso remoto qualquer,
Heróis, frases, sonhos,
Todos os aeroportos afogados em primavera........

Cato um sorriso e coloco na palma da pluma,
De garfo e faca para o vento,
Somos todos folhas levadas pelo vento,
A vazante de um rio desnorteante e desnorteado.

De garfo e faca para o vento,
Estrada de nuvens,
Cinema de insetos.

Queimo minhas asas e começo a voar. 
 

Poemas para se ler ao meio-dia

Procurando o infinito em uma selva de espelhos,
Nadando até o azul da piscina me afogar.

No sufocante meio-dia em que revelo os meus segredos,

Sei que nenhum guarda-chuva pode me proteger.
Sei que o infinito esconde suas senhas dentro desses óculos escuros,
Sei que essa tempestade solar não quer me revelar nada,

Meio-dia de relógios sem ponteiro.
Avenidas interrompidas.

Pessoas de plástico sorrindo na avenida,

Mulheres peladas naufragadas nas bancas de jornal.
Para onde vão as estrelas quando o céu desaba?
Deus está solto, Deus está solto.
Junto com minhas cartas embaralhadas, minhas janelas de silêncio, aqui estou eu e aqui está o sol, aqui está o seu brilho mais violento.
Comendo céu e vomitando estrelas para quem quiser ouvir.

Agonia na gaiola, o infinito também chora.
O minuto seguinte não existe e tudo é de areia,

Sou só eu de pijama no meio da calçada.
Agora há uma enorme procissão de simulacros afogados,
Espelhos empilhados como degraus para se atingir o universo.

 

Pego a poeira das estrelas e guardo,
remendo, junto e formo outra estrela possível.
(o meio-dia possui estrelas que até a noite desconhece).

Dias

O viaduto se divide e corta o céu. Como é bom naufragar às 4 horas da tarde. Pegar seu barco, sua nau, seu mastro e ir para a avenida mais movimentada da cidade. Cravar sua carcaça na paisagem e começar o jogo. Escolher o prédio mais bonito e que melhor possa abrigar possa abrigar o seu barco pegando fogo. Entrar de encontro com as estruturas. Entrar de navio pelo corredor e brilhar. Brilhar. Dias de brilhar.  

Dias em que alguma lua vem invadir nossos quartos, faróis acesos, clarão em nossas casas. Dias em que os anjos e as máquinas vêm nos dizer bom dia. Dias em que pegamos os motores roubados e transformamos em cata-ventos. Dias em que nossos lençóis iluminados são belas bandeiras. Dias de observar armações, dias em que as luas estão ligadas nas tomadas, dias de televisões fora do ar. Algo está no ar, difícil flutuar, mas se flutua, impossível velejar, mas se navega. Algo no ar diz ser proibido dançar, mas se dança. A cidade é nossa dança. As ruas os nossos barcos, nossos braços. Dias em que saímos desorientados pelas calçadas, dias de cobrir as paredes descascadas com folhas de jornal. Dias em que Andre Breton está sorrindo. Dias de edifícios brilhantes. Dias em que o Mc Donalds serve hambúrguer com girassol e poesia.

mel (tabuleiro da rua)

O peixe da angústia, o mundo transparente. Trago um belo pássaro por de trás do cabelo. Os tigres na calçada, ruas sem cor, a tarde grávida de mim, a tarde grávida de mim. 

Unhas me cravam a pele de delicado metal, entre lama e estrelas. Estou na minha avenida. Eu vejo flores e choques elétricos. Continuo me perdendo nas mesmas esquinas. Caminhar é ter falta de lugar. 

Mel, só tenho para te oferecer esse meu reino depredado.O palhaço bate na tua porta. Depósito de máquinas desligadas. Busco por uma vida inteira a vertigem das discotecas. Nadamos em um estacionamento sem água.Amantes do asfalto. Corredores estalam. Quero pular mesmo, te guardar e levar essa turbina mesmo na cara. Relâmpagos no meio do intestino e sair no meio do trânsito dançando porque o mundo é isso mesmo, nada mais nada menos. Só essa tatuagem, só esse brilho, só esse foguete de instante. Se te toco dá choque, se não consigo é esse escândalo. Você é sereia louca de Ipanema. Você é essa luz que não se guarda, você disfarça escapa, sempre me engana de graça. Eu finjo que não noto, disfarço e volto.Afogado na vida: 220 volts 

O galã, o canalha infalível. Fico aqui mesmo com meus sóis espalhados pela calçada. Tropeço em tudo. 

Perdi meus sonhos em uma tarde da sexta-feira.. A grande verdade é que me assassinaram belamente. Ando todo desconjuntado. 

Remendo quando posso, uso cola quando amo; junto todos os pedaços.

 Novo mundo (caos portátil)

Te deixo aqui como uma estátua terminada. Em sua tecnologia sonhada,  a poética do concreto nos despeja três mil anos de Dionísio para serem devorados. O peso nos deixou levíssimos demais. A escuridão te luziu.. Os encarcerados do filme olham e nada entendem, já não conseguem mais escapar. Te alago no cimento. Te seco nesse mar 

O cinismo é a sabedoria dos vencedores; pura estátua nos ponteiros de carne.Como órfãos da tempestade cada planeta carrega o nome de sua pele, cada placenta traz sua casca gravada na viva cal das plumagens do cabelo. Deuses dementes não deixam a cidade dormir 

O engenheiro quer abolir a noite, mas nenhum engenheiro jamais abolirá o fato de que a localização poética soterrará a localização geográfica. Nossas margens se derretem na nébula do cotidiano. Duraremos pelas esquinas, no transe solar de engenharias amplificadas por guitarras dissonantes de vazio, na solidariedade de dois abismos. 

Eu te agradeço Spielberg pelo lixo de cada dia, eu te agradeço Spielberg  pelo caos portátil. Meus sonhos foram sepultados em 1972, e eu não era nem nascido. Nasci sobre as  ruínas de um mundo imaculado, nada me pertence mas eu desconfio que o mundo atual  seja bem melhor. Carregando esse vídeo game estúpido dentro do peito, nasci com uma máquina de fazer inferno e de fazer poesia. Eu te agradeço Spielberg por tudo. Eu te agradeço Spielberg  mesmo assim por tanta ilusão. Desconfio das idéias,sei que todo poema é uma navalha. 

Vamos caminhar depois do tiroteio?

O blecaute nos iluminou

O  novo mundo é bem bonito nas telas da cidade.

Do livro Poemas para se ler ao meio-dia. (7Letras, 2006)

A eficácia dos tigres

A eficácia dos tigres é vir ao mundo de onde menos se espera, ou de um escuro tão fundo que nenhum blecaute sonha alcançar. Os tigres necessitam da noite para se preencherem, suas garras apontam para a lua. Tudo que é noite traz seu prenúncio de tigre. Tudo que transborda traz sua ameaça de tigre. Tigres são sacralizáveis, pessoas não. Tigres eternizados andam depois da tenebrosa. Tigres pisam livres pelos arredores dos prédios anônimos. Um tigre salta para dentro do tempo. Tigres não toleram sofredores. Tigres não carregam a poeira dos séculos. Os tigres reinventam a vida todos os dias..

Os tigres são contra o charme luminoso da objetividade e do equilíbrio, do rigor e da lucidez. Os tigres são pelas estruturas vivas pingando sangue. Os tigres degolam os objetos úteis com tremenda precisão. Os tigres votam pela beleza e a delicadeza dos acidentes. Os tigres sabem que toda rua pende frágil como uma metáfora. Os tigres acreditam no sexo matemático das coisas. Os tigres irão cravar as garras no horizonte quando menos se esperar. Abrigar um tigre é como flutuar à deriva sem sair do lugar. É como se sentir desplumado, espectador sem espetáculo, desastrado sem desastre, computador sem dor alguma para computar. Enquanto sobrevivemos eles cavam o ar, prósperos e acessíveis. E quando os tigres invadem as cidades, será que são eles que se humanizam, ou na realidade é a humanidade que se tigrifica? .

Quando os grandes prédios dormem. Nas sombras das estátuas; a incerteza é a religião dos tigres. Mas, o que foi feito das manchas solares? E quantos sonhos vermelhos sustentados por estas garras? Tigres desmoronados atravessam as galáxias. Este é o lugar onde os planetas nascem ao contrário. Raio sem trovão, precipício sem margem, náufrago sem destroços, âncora sem mar. Quando os grandes prédios dormem. Seguir um tigre é como estilhaçar espelhos e não morrer. Não vos admireis se tigres se deitarem na selva de vossos pés. Tigres perpétuos andam soltos pelas jaulas das ruas.

happy & and

“numa rua sem gravi / dade somos dois / astronautas indo comprar pão”
(Alice Sant’ Anna)

No museu de infinito

os passos parecem dançar

Hoje só o vento tece

o tecelão da paisagem

Lá fora a multidão continua fria

fria

 

Desmorona o dia nos andaimes de claridades

na cidade de cal e sonhos

todo prédio é sustentado

por uma ilusão

 

O engenheiro viu as coisas turvas

na pavimentação do céu

no vazio das paredes

no pulsar dos muros

no gosto amargo da vitória

na agonia dos vencedores

no monótono

troféu

 

O anzol de rampas e viadutos

acaba de cravar

seu último raio

 

Éramos astronautas

percorrendo o meio-fio

Quatro asas

flutuavam

rumo à outra

eternidade

Pelo avesso

Te encontro pelo avesso, nas sombras das estátuas. Astronautas trazem na pele um sol sonâmbulo; homens de aço e de treva. A lua dá o eixo para se flutuar. Astronautas entregam às feras suas cicatrizes. Incandescentes como qualquer manto de pó. Mares se enfurecem sob seus pés. Os sonhos são as âncoras do nosso absurdo. Os assombros incendiarão suas asas. Estas são suas núpcias de fogo. Seres em chama se alimentam da poeira dos acasos. Este é o mundo dos átomos e das estrelas que despencam para sempre. A incerteza é a religião dos tigres. Mas, o que foi feito das manchas solares? E quantos sonhos vermelhos sustentados por estas garras? O vampiro é o rei da escassez. O coro é implacável. Este é o lugar onde os planetas nascem ao contrário. Raio sem trovão, precipício sem margem, náufrago sem destroços, âncora sem mar; trampolim sem chão.

Te imagino em todos os aviões do céu,

Meu aeroporto está lotado.

.

Como é bonito o nosso sol noturno,

engravidando todas as estátuas da praça!

a mulher mais triste do mundo 

Não tem túnel. O lado de dentro reflete o lado de fora . Nadando assim na piscina desses olhos verdes.................... (espero o tiroteio passar) 

Avenidas atraem umas as outras e se colapsam, despencam. Os planetas continuam a desabar uns sobre os outros diariamente como quem ainda espera por um astro desastrado. Como quem confia nos florescimentos forçados. 

A avenida bem sabemos é um chumbo de pluma. 

Nas calçadas dos ouvidos tudo se arquiteta  como se fosse pedra a areia. Os colírios cegam nessa colagem de sol desabado. O eclipse não cura nada. Os doutores certamente entrariam com as respostas aqui. Perguntariam por quantos ossos calcificados em cada prédio construído.Perguntariam pela calçada fria das musas. Perguntariam por onde os prédios se equilibram.Perguntariam aqui pelos nomes dos rubros asfaltos nos saltos de ar. 

Mas na febre da festa ela nem ouve a carne das palavras e se penteia com dinamite; escapa por uma fresta. Do caos à catarse, a íris da tarde se transforma em veneno na selva de pavimento no desastre desastrado. 

A tarde desaba sobre os carros,  a tarde como um grande bumerangue de vazio. As plumas estão grávidas dela, por isso tantas galáxias, por isso tantas galáxias. 

flor ausente

mar em carne

viva

seu jeito anjo

exterminador

 

palavras somem pelos guardanapos

janelas se desfolham como bandeiras

olhos transbordam pelas pétalas dos teus pêlos

pratos e copos se quebram sem nenhum escândalo

 

acompanho suas pegadas como se fossem

cidades

todas as manhãs jogo minhas asas mortas

no mar

Babylonest [Lullaby]

Existem palavras feitas para serem lidas no escuro. Dias estranhos, melhor escapar daqui. Dias bonitos, aos vencedores: o dia. Muros brilham nas argamassas dos perdedores. Aviões de chumbo voam na tua retina verde, como sementes para os olhos, o aquário escorre escorre escorre........ projeções de Monica Vitti; dilúvios de Chernobyl. No meio do parto você rasga meus poemas com os dentes, de repente estrelas descem do teto, o lilás é só para iludir. Estúpidos girassóis entopem tua casa, girassóis fecundam a lapela da tua camisa, a fechadura te alaga todo, ela está grávida de sol. E como diria Edu Planchez: só uma alma de diamantes pode reconhecer outra alma de diamantes; só o fogo purifica o fogo. "E quem é que precisa de maus governos, se todos nós somos presidentes do universo inteiro?". Aqui não existem princesas, somente belas salas. Aqui se anda de deserto coberto pelas quatro tardes. Aqui nenhuma morfina nenhuma tomada. Aqui sempre uma frase pronta no cotovelo das horas. Algo como um aleluia ou um assalto. Aqui nunca se entende muito bem o que os cowboys fazem dançando música eletrônica no meio daquele deserto de lá; no deserto de cá esses óculos escuros me cabem muito bem. No espelho do que não vejo, navalha. Por de baixo o segredo; como uma artéria inchando, como um peito de areia, nenhum alto-falante me guia. Aqui sou caça bem suponho nessa superfície de antenas; nesse presente exposto até a última artéria; iluminado por todo aquele escuro de nós mesmos e belas guitarras dissonantes; poetas cuspindo um dia-a-dia tecido em balões de ar. Aqui o meu acaso bem pago. Aqui essa tela de prêmio e os despertadores que me desaceleram. Antonioni estava certo; tenho febre de espaços. Agora transparente não espero, passo. Mastigo alguma lua de chiclete, as aparências não iludem; Antonioni estava mais do que certo. Ela tinha flores no cabelo. Eu escapei pelas paredes. Ela tinha paredes no cabelo. Quero radiografar tudo; um aquário infinito em uma cortina de areia, todos os desertos do mundo sorrindo no meu fim. A leveza é um peso insustentável.

Do livro Os tigres cravaram as garras no horizonte. (2010, Circuito).

Augusto de Guimaraens Cavalcanti é poeta, carioca, tricolor, nascido em 1985, e integra o coletivo poético Os Sete Novos. Em 2006 lançou seu primeiro livro Poemas para se ler ao meio-dia (7Letras) (com prefácio de Heloísa Buarque de Hollanda e orelha de Zé Celso Martinez). Em 2010 foi a vez de Os tigres cravaram as garras no horizonte (Editora Circuito) (com prefácio de Cláudio Willer e pósfácio de Alberto Pucheu). Atualmente prepara seu terceiro livro a ser chamado de Fui para Bulgária procurar Campos de Carvalho.

Entrada no TriploV: 14 de Fevereiro de 2011