ANTÓNIO VERA - SONS QUE FALAM
 
TRANSFUSÃO

meus olhos festejaram-se
em teu rosto.

pararam onde mais
se nota a veia
esquerda e azulínea
do pescoço.

voo de um bico alado
me a sondou:

e então o coração se me vazou
na torrente sanguínea
do teu corpo

O BEIJO INTELIGÍVEL
frívolo e veemente
como um dardo

assume o lanço
e treme ao ser lançado

os lábios sussurrantes
e pedintes
de êxtase e comunhão

e o coração
por todo o corpo acelerado
freme perdido o nexo
exigindo-o
do topo ao centro
à base
 
O TEMPO, A RUA, A ROCHA INTÁCTIL

o passatempo desta rua é

sentir passar o tempo dos que passam
por ela num vaivém

sorumbáticos, sós,
álacres por momentos
passam, isto é, passamos
mas ela fica sempre aquém e além
de nós, mortais.

a rua
também passa e ultrapassa
a cortina invisível
que é o tempo:

rocha de vidro intáctil
presumível
porta mental talvez da nossa vida
por onde, enfim, fitamos
paixão, poder e posses intangíveis
a esperar do lá fora o impossível
prazer
em estado humano ou de outra forma

eterno ou à la carte
mas não sós


não sós e infelizes

tal como nesta rua incongruente
fechada
assustadora
e previsível

UMA VIDRAÇA NO INVERNO
sobre a vidraça nevada
sulquei com o dedo o bafo
do nosso quarto aquecido
por carícias, por perfumes
que exalava a nossa pele
à lareira dos sentidos.

no vapor ficou gravado
naquele instante indeciso
um diagrama enlaçado
que escorregou pelo vidro

e se embaciou de novo
nas horas que precederam
as preces da despedida
 
 
ANTÓNIO VERA. Poeta contemporâneo da Árvore e da Távola Redonda, revistas nas quais colaborou ao lado de Eduardo Lourenço e outros. Os poemas agora publicados no TriploV são inéditos do livro em preparação "Sons que falam".