ANA TEREZA SALEK

Poemas de «Dezembro»

o estranho

Desde que nasci

Nunca tive outra suspeita:

Tem alguém no telhado

Que me espreita.

 

Desde que nasci, nunca fui

Ao contrário; sempre quis ser.

 

Desde que eu fui,

Quando vim a ser

Fabriquei saudades,

Desculpas para esse choro.

 

Desde que nasci nunca duvidei:

Tem alguém no telhado, eu sei.

os outros

Aqui não tem mesa nem bolo,

Não sentimos fome

 

Não tem credo nem corvo,

Temos mais o que fazer 

 

Não tem tela nem brinquedo,

Não gostamos de bugiganga.

 

Nosso compromisso é celebrar os nossos centenários.

 

É por isso que descem os raios.

 

Os relâmpagos são o fogo da vela

Dos mortos fazendo aniversário.

menino

Se algum dia eu te ofender

Eu chorarei.

E respeitarei os mais próximos

E respeitarei ainda mais os próximos.

 

Se algum dia tu morreres, e irás

Colherei algumas flores

Espetarei meus rins com acupuntura

Vencerei tantos medos

Pousarei uns bons ramos sobre teu caixão

E cantarei a nossa música.

 

E se algum dia eu morrer, e irei

Saberei se há a paz

E não te esperarei.

 

Não precisamos ficar juntos para sempre

 

- Já estamos tão juntos, sempre...

 

Para os intrusos de plantão

Isso não é comodismo

Isso é uma orgulhosa construção

Que sente orgulho, ela própria

Não eu.

Eu nunca.

hand made

Minhas mãos idiotas

Envelhecem antes,

Sempre antes

Do anoitecer.

Vejo-as, sem sentido

Idiotas e velhas

Sob a luz.

 

A sombra do corpo

Cobre as mãos

Sempre encolhidas

Sonhando no peito

 

E os sonhos são

Unicórnios desgraçados

Que não olham

Pro céu.

 

Desenho centauros;

Metade cavalo, metade

Pedra.

A metade humana não.

 

Sou perplexo de minhas

Mãos.

non gratos

Nas palmas das

Minhas mãos

Mora o pecado,

O mal dito.

 

E é por isso

Que sempre ando com elas atadas.

 

A chegada dos outros,

Dos duplos,

Dos desconhecidos

Sempre foi

O grande temor dessa aldeia.

(meus punhos estão mais cerrados agora)

 

É sempre entre sonho

E vigília, quando todos

Estão a esmo que os intrusos

Fazem os seus convites.

(me apronto para o combate)

 

Quando um bater das

Asas dumas criaturas sem

Rosto adentrar pelo meu

Portão

 

Abrirei então os meus braços.

mascarado

Fui ao doutor
E ele me disse que eu padecia de mal terrível
E nada que eu fizesse adiantava.

Aprendi a ser pessoa qualquer que existe
E hoje aceito meu mal

Como aceito:
Telefone, teleférico, alpiste
E meditação transcendental.

Não devia ter contado a ele
Que vejo os bichos sem pele;
As velhas com os dentes roxos
E que todas as pessoas me parecem (aos olhos)

Ter um alicate cravado na maçã do rosto.

Meu rosto não tem nem maçã.
E minha pele cai,
Pendurada sobre o osso.

à francesa

Sento à esquerda da mesa

À direita senta-se Teresa

E ao centro o “cara imunda”.

 

As outras pessoas dispõem seus corpos

No restante das cadeiras

Comem da comida, bebem do vinho

Todas as caras são pálidas,

Todas como caveiras.

 

Pela esquerda não posso

Esticar o braço para apoiar

O copo que o braço de Juquinha da Silva

Está ali atrapalhando.

 

Posso espancá-lo, até que desista

De atravancar minha passagem.

 

Sou covarde, nada faço;

Peço licença e passo com delicadeza.

 

Por dentro uivo como um lobo faminto.

carrossel

de manhã na

praia eles combinam

o que farão à noite de

noite, na festa eles

combinam de ir à

praia amanhã.

origami

com a mesma

precisão

que corto meus

lábios      

faço origamis

de ventania.

dobro um boneco de neve, um barco, uma língua.

seco meus cortes

com origami

e saliva

soneto do dentre de prata

Quando eu nasci ganhei uma caveira

De anel dourado, esqueleto abissal

Em meio aos dentes da musa ceifeira,

Tinha um de prata, um dente adicional…

 

E esse dente coberto de poeira,

É meu amuleto, minha espinha dorsal

É hemistíquio da minha vida inteira!

Taxa de metabolismo basal!

 

Meu amuleto é o meu melhor amigo

Nunca irei me desfazer desse artigo

Que te traz o azar e a mim traz a sorte…

 

Minha família se quiser recuse;

Que eu quero que meu esqueleto use

O dente de prata depois da morte!

«Dezembro» (2010)

Ana Tereza Salek nasceu no Rio de Janeiro, em 1988. Publicou o livro de poemas «Dezembro» (2010).