Em primeiro lugar,
quero aduzir as minhas sinceras desculpas a si meu caro Poeta, pelo
facto de, sem que eu pudesse controlá-lo e sem permissão prévia, eu ter
sido assaltado pelo descomedido arrojo de publicar alguns textos seus
(inéditos), da vasta e invejável prateleira de projectos-livros, com os
quais, a título de “anónimo/solitário escritor de gaveta”, já contas. Em
segundo lugar dizer: que me valha o que tiver que valer este arrojo, mas
verdade é que o anonimato é um bilhete de identidade ou, por outra, alma
sem entidade para pessoas que tenham algo a dizer, movidos pelos
diferentes estímulos que o mundo que os rodeia acciona. Aliás tem sido
suas palavras, quando perguntado “Por que escrever?”: “Escrevo porque
estou vivo. E estar vivo é fazer leituras. Não só leituras que envolvam,
de um lado, uma escrita, e do outro, um par de olhos, como muitos
escritores já conceituados o dizem, mas leituras que podemos fazê-las
com os nossos sentidos todos, leitura que se faça na mesma condição da
força de uma mão quando todos os dedos participam numa empreitada
transversal a literatura, a folha que chora ao vento porque foi obrigada
a se soltar da mãe-árvore, o mar que nos conta segredos que os homens
não nos contam, a pedra que nos ensina que o que se ganha pelo silêncio
onde pode se falar e a permanência na inércia do pensamento, no mínimo,
é ser pisado pelos pés que pisaram sei lá o quê. Se possível for,
chamaria até estas linhas um sexto sentido: as outras leituras que estão
acima do nosso entendimento enquanto seres ‘vivants’.” Seria totalmente
de uma insensibilidade inefável da minha parte, se, depois de ter lido
algumas obras suas, obras que retratam o Moçambique que vivemos, ou,
mais exactamente, o Moçambique que somos, eu não intercedesse a favor
daqueles leitores que, com a ajuda de um grande escritor, como eu e os
que o conhecem somos da opinião que você o é, queiram talvez fazer boas
leituras do mundo que os rodeia. A tua poesia tem “Muitas Vozes”, tal
como pediu F.Gullar, outras solitárias, outras renovadoras, e outras
menos vibrantes na música do silêncio, as mesmas bailam na dimensão
corporal do tempo e gaguejam na linguagem poética em permanente vibração
nos tímpanos do espaço rítmico da procura nas fronteiras do devir.
O dia 29 de Março
de 2014, a semelhança do dia 19 de Outubro de 1986, data na qual
perdemos, num acidente de aviação, ocorrido na vizinha África do Sul, o
primeiro presidente desta “Pérola do Índico, é uma data que ficará
indelevelmente gravada na consciência colectiva dos moçambicanos: numa
réplica numérica de mortos em Mbuzini, 33 almas pereceram na queda do
Voo MT 470, das Linhas Aérea de Moçambique. Sensível aos estímulos do
mundo que nos rodeia, mais uma vez, aos moldes que já nos habituou, essa
espontaneidade poética de criar imagens do mundo que percebe através dos
sentidos, com o projecto-livro intitulado “33
+ 33 = 66 —
POEMAS MORTOS NO VOO QUE A DOR ATERROU”, juntou-se a lágrima
colectiva que, mais do que uma família, uma nação deixa serpentear no
rosto da esperança que perto esteve de ser a primeira a morrer. Li
alguns poemas deste projecto, com lágrimas nos olhos e na alma que
escrevem tristezas e alegrias ao lê-lo, meu caro Leta:
VOO TM-470
(Em memória de
Carlinhos,
Yumala, Laisa e
Jeinia Sambo)
O pedaço de papel
foi amassado na
coberta do punho serrado.
Nada se sabe das
palavras ali escritas:
vida, feridos, ou
morte encontrada;
prosa, poesia, ou
um papel em branco.
Nada! Nada de
nada! Nada!
A DOR DOS REIS
(à lágrima
colectiva que somos
chorando através
dos olhos
de Carlos Reis)
Que conforto
para essa alma de
esposo e pai
que caminha no
escuro
da fatalidade?
Que sonhos por
sonhar?
Que voo por voar?
Teve a sorte ou
azar
de não embarcar?
COMUNICADO A
BORDO
“Caros
passageiros,
pedimos as nossas
sinceras desculpas
pelos embaraços
que possamos causar,
pelo sucedido,
mas temos a
informar que o voo MT470
terá de efectuar
três aterragens
de emergência:
-
1º Parque
Nacional Bawbwata;
-
2º Cemitério de
lhanguene;
-
3º Cemitério de
Michafutene.”
O seu “eu”
poético mostrou igualmente ser um homem que não tem medo de deixar a sua
alma insuflar-se do mais nobre dos sentimentos que um coração já deixou
ser habitado, o amor, ao escrever uma obra intitulada “ABC
DA ANGÚSTIA OU POEMAS DE “A” A “Z” NO ABECEDÁRIO DE QUEM SOFRE”,
obra esta que dedica a T., “ seu abecedário de felicidade”, advertindo a
todos os que amam que “conheceu o amor aquele que por alguém sofreu de
“A” a “Z””
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Perante o
espectro de guerra que de um tempo para esta parte vivíamos e na árdua
tarefa de manter a paz do corpo e da mente dos cerca de 23 milhões de
moçambicanos, na busca pelo não revisitar esta gigantesca lágrima
chamada guerra, na alma de poeta sempre resvalado na sina de olheiros
deste “mundo por melhor”, brindou-nos ou, por outra, demonstrou a sua
causa enquanto poeta criador, através do projecto-livro “SANTOS GIRAM E OUTRAS POENTURAS EM QUATRO EXPOSIÇÕES”, uma nova
forma de estar na poesia, a “Poentura”, que é, segundo as suas palavras,
“ (…) uma escola literária que resulta do casamento entre a poesia e a
pintura, onde a tela cede lugar ao papel em branco, a tinta cede lugar
às palavras e o pincel cede lugar a esferográfica. Portanto estamos
diante de palavras que pintam folhas em branco, confundindo-se, em algum
momento, com a poesia “Neoconcreta” apresentada por Ferreira Gullar,
Reynaldo Jardim, Theon Spanudis, Amilcar de Castro, Franz Weissman,
Lygia Cark e Lygia Pape, conforme o manifesto publicado em 1959, no
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, no entanto, sem nunca chegar a
sê-la, na medida em que o “Neoconcretismo” é o casamento da pintura,
escultura, gravura e poesia, a “Poentura” manifesta-se no himeneu entre
a poesia e a pintura.”
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“OS MEUS PAIS
SABEM QUE NÃO IRÃO VIVER PARA SEMPRE” é um projecto-livro seu que
representa mais um oásis no deserto da literatura infanto-juvenil
moçambicana na qual o autor manifesta a aversão que tem da maneira
insustentável com a qual tratamos o “verde do mundo”, levando-nos a
pensar o mundo que queremos deixar aos nossos filhos.
A TRISTE
HISTÓRIA DA FAMÍLIA PEIXE
O Peixe-filho
Das águas
cristalinas
Do “Wimbe” dos
meus sonhos,
No mar que o viu
nascer,
Triste, se afogou;
Desaprendeu o nado
Quando teve que
dar
As barbatanas e o
peito
À contramaré da
poluição.
A Peixe-mãe
Nem tempo teve
para nadar o seu luto;
Os olhos que a
deveria admirar
São os mesmo que a
assistiram
A agonizar presa a
uma rede.
O Peixe-pai,
Esse nem foi
enterrado
No estômago
nacional.
Lá se foi uma
família!
Eis aqui a reposta
para aquelas (in)sensibilidade que apregoam aos quatro ventos que a
instituição literária moçambicana foi assaltada pela falta de
“continuadores”: poetas como Celles Leta, ainda que desconhecidos e sem
obra publicada, têm sempre lugar disponível para si na prateleira da
literatura moçambicana. Celles Leta a par de poetas como Mbate Pedro,
Sangare Okapi, Nelson Lineu, Léo Cote, Álvaro Taruma e outros que fazem
parte da “minha” Selecção Nacional surgem sob o signo de qualidade.
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