| CANÇÃO METAFÍSICA Eu vi o Deus perdido em um país inquieto, O Deus assassinado p'lo mortal Voltaire, E dentro da capela, já bem ressurrecto, O negro coração de Charles Baudelaire. Esse Deus é que fala aos justos e aos heróis, À Luz imaculada, ao vate verdadeiro; Chorando em roucos sons, na vastidão dos sóis, Eu vi vertendo pus o sangue do Cordeiro. Oiçam-nO respirar; na praia mais abjecta Há mornas prostrações, delírios de Luar... E um anjo me viu e disse: -«Oh grande Poeta, Não faças dessa Luz a larva tumular .» Mas o Deus projectava na praia uma sombra, Um misto de Luz e de grande rebeldia, E eu espreitei e vi, deitado numa alfombra, Satanás dormitando na minha Poesia. E eis que Deus lhe disse: -«Oh anjo fulminado, Tu eras uma vez meu anjo predilecto; Porém roubaste a Luz, por causa do pecado Rastejas como um verme aos pés do Paracleto. Eu dei-te a esmeralda que tinhas na testa, O verde rubi dessa grã Sabedoria, Mas por a tua voz não ser a voz modesta, Condenado estás ora ao mundo da anarquia. » E então essa serpente, com voz de trovão, Encapelou o mar, encapelou a vida, E disse sob a forma de um vil garanhão, Com olhos flamejantes e voz de suicida: -«Trabalhei no inferno p'ra ter Liberdade, Sou possesso de altura, mas vivo num cabo Onde os homens do mar, com grã fatalidade, Encalham os navios e chamam-me Diabo. Mas, cansado da noite, do reino das trevas, Há muito que já espero uma bela alvorada Que mude o meu Destino e me leve onde levas, Oh Deus imarcescível do Império do Nada. E eu só quero dormir, encostar a cabeça No seio do meu Pai, minha Luz da quimera, E não quero que nada no mundo me impeça De ver os rouxinóis e o Sol da Primavera.» No Cosmos pois se deu tal coisa grandiosa: O Sol uniu-se à Lua, o cardo uniu-se à rosa, E das químicas bodas do macho coa fêmea O grão Semeador extraiu a sua sêmea. E eis que Satanás, por fim unido a Cristo, Gerou a Humanidade da época da Luz; Novo homem nasceu com Hermes Trismegisto, Novo Éden surgiu, e não é precisa a Cruz. Lisboa, 29/6/87 inspirado no «aqueloutro» (soneto de Mário de Sá-Carneiro) O estúpido enganado, o indecente Afinal, que passou a vida a correr , O casaco sem pele, o rapazinho sem dente, O aborto renovado cada vez a nascer. .. Em lugar de Senhor Doutor, o grande inebriado, O mendigo pela rua a pedir explicações Dos bons que não teve nas suas boas acções - A candura inefável dum menino escorraçado... O esqueleto que dorme de papo pró ar , O moreno disfarçado pela ânsia de Luar , O maluco sem loucura... a Ética ao deus Baco... O estranho por toda a parte... Ainda que parta Pelos mares sem fim amaldiçoando Esparta, O menino benevolente... o hippie sem tabaco... Lisboa,3/10/78 ________________ RECORDAÇÕES DE BELADONA OU A MINHA TROPA FORAM OS «ROLLING STONES» Beladona, a Poetisa, tinha crinas sedosas a cheirarem a mijo e a volúpia. Nas suas mãos brancas ocultava-se o meu missal. Era um livro cor de sangue inscrito com as solenes profecias dos Grandes revoltados americanos, e era assim que nos aparecia o cadáver de Jim Morrison: cabeludo, barbudo, e com uma raiva de glicose que nos subia pelos dedos acima e nos tomava o corpo todo. Em noites em que a Lua era apunhalada pelas nossas bocas, oh meu Amor, tu deste-me um grande e vermelho narciso de Nápoles: era uma flor desenfreada que tinha nas suas pétalas o licor venenoso da maldição e da bem-aventurança. E hoje, fechado em cavernas escuras como os bares soturnos e sórdidos, eu penso nas carretas de morangos que tu trazias à cabeça, nas músicas solenes com que nós violávamos a campa do Poeta Gomes Leal. Era um tempo feito de urina cor-de-rosa e rosas de esperma, de bares soturnos e sórdidos como a vagina peluda da primeira prostituta. Nas nossas mãos, contudo, a Rosa d' Anarkia brilhava cada vez mais mística e surreal, e muitas foram as vezes em que os dois companheiros da Loucura amaram raivosamente, como uma laranja que se espreme na quentura duma mão, as rodas cáusticas e solares e floridas da primeira manhã do mundo. Tínhamos junto de nós a profecia e o desespero, a carta do mundo e a acidez do álcool etílico. E podíamos, juntos, domesticar os animais que viessem beber à nossa mão, em noites de pedradas e da tua gravidez. Mas as moscas atacaram as nossas cabeleiras; nos bares soturnos e sórdidos morreram todas as loucas e por fim fez-se mais triste o rosto luzidio de Gomes Leal. E é por isso, meus amigos, que a minha tropa e a minha pedra foram os «Rolling Stones». Lisboa, 9/1/89 _______________________ ao jim morrison «Well, show me the way to the next whisky barn Respondo: Bebo sempre whisky contigo à hora em que as cadelas fazem amor e o mar é um búzio de Loucura Também tu, Poeta, gritavas a raiva da tua lucidez de fauno azul e por isso eu canto contigo até ao fim das estações canto contigo os blues molhados de esperma e cocaína canto contigo uma oração americana que invada definitivamente o cérebro dos Presidentes de todas as repúblicas e faça explodir o tecto da sala até Cristo ressuscitar de novo de entre os mortos e dizer-nos que nós somos os eleitos nós somos os puros nós somos os Ladrões de Fogo E eu sei que sou mal visto pelos burgueses por trazer na minha garganta um pouco do teu Fogo Lisboa, 6/10/86 _______________ ALQUIMIA Olhei para dentro de mim E vi o Azul, um Céu sem fim. Mas depois olhei para fora E vi mais um corpo que chora. Separei o subtil do espesso E fiz uma estátua de gesso. Essa estátua tão linda, de Amor , Tinha a marca do seu criador . | | |