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ROCK & ROSA - MARIA ESTELA GUEDES
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Não, Paulo Brito e Abreu, nascido em 1960, não é um poeta português contemporâneo de Camões, nem um árcade, nem um discípulo de Antero de Quental. Não, definitivamente, está o cibernauta equivocado. O camonianismo estrito e o mais lato classicismo de Paulo Brito e Abreu, nesta nossa língua latina vertidos, foi cultivado com Camões e com os autores clássicos, mas numa escola muito especial, cujo brilho eclodiu nos anos sessenta, e por aí adiante nos veio atingindo em sucessivas ondas de choque, patente num dos seus títulos mais expressivos : "A minha tropa foram os Rolling Stones". Foi nessa sintonia que tomámos contacto com Jack Kerouac, Allen Gisnberg e com aquele filme protagonizado por Peter Fonda, que transpõe para imagens as palavras da geração beat, e ficou na memória de todos, adolescentes então, ou ainda nem isso - "Easy Rider". Viajar era para nós mais essas leituras e psicadélicas visões do que uma realidade estilo "On the Road", pois Portugal só abriu as portas ao exterior depois de 1974. Agora, sim, viajamos muito, somos um pequeno país, mas muito cosmopolita. O que nos estimulava a imaginação era a beat generation, o rock, a revolução sexual - enfim, o que chegava aos cineclubes, ou em livro, vinil e ondas hertzianas a um país em que os poetas se sentiam apertados, maiores do que ele - como aliás sempre foram. Paulo Brito e Abreu é assim um poeta em que se estabelece uma fusão muito original de duas culturas perpendiculares, uma erudita, a outra popular, uma de estrato latino, a outra de estrato anglo-americano. Nós, portugueses, dotados de facilidade para absorção de culturas alheias, mais desejosos de comunicar com o outro na língua dele do que de impor-lhe a nossa, o que é um gesto de amor, tal como o mulato, criação nossa, podemos remirar-nos com prazer e orgulho na sua obra, pois ela é um espelho fiel da nossa vocação miscigenadora. Mas vai mais longe a miscigenação, ao caldear na espiritualidade que nos fundamenta como nação cristã, uma série de outros vectores religiosos, alguns oriundos da Índia, o que não deixa ainda de entroncar na cultura rock, por muito que as filosofias e religiões orientais tenham chegado antes disso à Europa. Citando Pinharanda Gomes, diz Paulo Brito e Abreu que "Deus há só um, cultos há muitos", donde em qualquer templo nos podemos recolher em oração. Se as culturas e os estilos se cruzam e fundem na generalidade dos poemas, há dois registos de escrita poética razoavelmente diferenciáveis, de tal modo que se diria pertencerem a dois diferentes poetas. Também não é estranha à nossa experiência literária um poligrafismo que no limite se consagra na heteronimia pessoana, mas não principia nem se esgota em Fernando Pessoa. Um dos registos é o do soneto e formas poéticas tradicionais, aquele que de tão perfeito às vezes pode induzir no engano de um poeta de outros tempos, segundo registo é o do versilibrismo, a poesia na franja da prosa, de que publicamos o que Paulo Brito e Abreu designa como a resposta portuguesa a "O Uivo" de Allen Ginsberg : "Cântico Imortal". Este cântico é uma súmula desses vectores de cultura popular urbana de que falei acima, homenagem explícita à beat generation. E também, nas palavras do autor, "uma experiência feliz de escrita automática", o que o remete para a área surrealista, na qual quase todos bebemos também. Tomemos então este cântico como extremo oposto do soneto à maneira de Camões, que nunca poderia ser fruto de escrita automática, dadas as exigências de obediência a esquemas rígidos de métrica, acrescidos em Paulo Brito e Abreu de outros dados que envolvem meditação prévia, como é o uso da língua das aves ou cabala fonética. Daí que no sopé de alguns poemas o autor se sinta na necessidade de explicar certas questões linguísticas, seja em vez de "coração" o emprego de "cor" um exemplo, termo usado nos cancioneiros medievais, cuja vogal é aberta. Questionado sobre o esoterismo tão óbvio dos seus poemas de jeito tradicional e clássico, Paulo Brito e Abreu declarou a sua aproximação à Fraternidade Rosa-Cruz. A partir de 1992, com a publicação de "Agricultura Celeste", retomou a tradição lusitana, que passa pela "Filosofia Portuguesa" e pelo Pessoa de "A Mensagem". Um dos nossos grandes mitos é o sebastianista, expressão de um messianismo nacional que tem no Quinto Império, o do Espírito (Santo), a sua utopia mais característica. Está em linha no TriploV um poema de Paulo Brito e Abreu sobre o tema, com esse título. Para terminar este artigo, híbrido de crítica literária e entrevista ao autor, é dele também esta observação, complementar do que afirmei acerca da fusão de vectores culturais: "Na linha de António Maria Lisboa, pratico a metaciência, união da poesia às ciências ocultas". União da poesia à música também, nos seus vários âmbitos, e sobretudo no sentido rimbaldiano (veja neste site o extracto do livro de Richard Khaitzine "De la Parole Perdue à la parole voilée", no qual o autor revela aspectos da cabala fonética no soneto "Les voyelles", de Rimbaud), em que o som e as letras têm significado oculto, decorrente da prática da língua das aves. |
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