I
Num brevíssimo bosquejo, o tema que pretendemos abordar entronca-se na nossa concepção da Literatura como portadora da mensagem, ou melhor, da mente e da imagem como agindo na matéria. Um pouco mais longe e, se nos permite o leitor, falaríamos da Literatura como mágica vivência, queremos dizer: a Magia só persiste enquanto foco imaginal.
Comecemos, portanto, no conspecto e no aspecto: aquando da amorosa e primorosa declaração que faz Félix à viúva, diz-nos o Autor que ficaram, os dois, «nesse êxtase dulcíssimo que é porventura o melhor estado da alma humana». Aqui temos, desse modo, impressa e expressa, a concepção do Amor como «loucura divina», da qual se alimentam e alentam, em toda a parte e em todos os tempos, os místicos, os profetas, os báquicos e Poetas. O erotismo, pois, e isto segundo Platão, é vivido pelo ente apaixonado como hieromania, entusiasmo, e mistério dionisíaco: trata-se, na natureza do êxtase, de transportar o homem para fora do seu Ego limitado, para além ou para cima do princípio de individuação. Este entusiasmo, ou melhor, esta insistência extática na verdade do Ser, é uma extrema e estreme dilatação da consciência; queremos dizer, por vocábulos outros, que o dionisismo e o divino são a própria condição da Literatura.
Mas rezingas na freima, amigo leitor? Suspeitas na carne, e estranhas o carme? Dissuadido ficarás ao saberes que, na «Poética», Aristóteles faz derivar, historicamente, a tragédia, dos ditirambos entoados em louvor da enofilia. Temos, então, a Poesia, a Arte, a música e o teatro, como aquilo que alarga, aladamente, as «portas da percepção».
Para não nos afastarmos do tema que nos propomos tratar, encaremos, à guisa do Autor, «Ressurreição» como um ensaio. O próprio Machado de Assis nos informa que este não é um «romance de costumes», é sim «o esboço de uma situação e o contraste de dous caracteres». E para entrarmos, direitos e rectos, no miolo da questão, diremos, nós outros, que aqui se desenha, bem firme, a luta e o dissídio entre a Razão e a Paixão, entre o homem do dia e o homem da noite, entre o homem prosaico e mundano e aquele que, como Cristo e os poetas, se afasta, providente, da banha gordurosa dos príncipes do mundo. Se Viana encarna, na ficção, o homem da prosa, Lívia e Menezes encarnam, na colação e na lição, o poeta aluarado e o homem da Magia: eis aqui, delineados em duelo, o escopo e a escola de nossos progredimentos. Viana deseja, vivamente, que sua mana Lívia se case com Félix, tendo em vista o proveito social e uma aliança económica; mas tanto Lívia como Menezes são romanescos e têm, dessarte, a cabeça e o canto cheios de caraminholas. São portanto, voltamos a dizê-lo, dois protótipos e tipos que aqui se confrontam: ao homem do «topos» opõe-se a Utopia, como ao homem da terra e do negócio se opõe, na simbologia, o homem do «otium». Para nos servirmos das palavras mesmas de Machado de Assis, são «os livros da imaginação» e a «vida contemplativa» que fazem frente à práxis, à prosa, e à «vida positiva». Por vocábulos outros, e conformes, o génio prático e mundano de Viana está nos antípodas do espelho e da Poesia, ou melhor, do «génio especulativo».
O caso, aqui, é tão tópico e típico, que surge exemplificado no Evangelho de S. Lucas. E surge destarte: nos arredores de Jerusalém, na aldeia de Betânia, viviam os irmãos Marta, Lázaro e Maria. Amigas muito amadas do caro Redentor, certa vez Marta e Maria receberam, no seu lar, a visita de Jesus. Enquanto Maria se quedava, num enlevo, ouvindo as palavras do Cristo, a Marta prosaica preocupava-se, diligente, com os deveres de dona de casa. E quando Marta, preocupada e ocupada, perguntou ao Messias: «Senhor, a ti não importa que minha irmã me deixe assim sozinha a fazer o serviço?», a réplica do Cristo foi como segue: «Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas; no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada.»
O caso é grave, o lance é de monta, o caso é profundo. A contemplação ou templação da Teoria, ou seja, da Poesia, é feita por homens e consórores que se enlevam, extasiados, mirando e admirando os lírios do campo; eles e elas a fazem, aditamos, independentemente dos benefícios práticos ou utilitários que daí possam advir. O espírito positivista de S. Tomé não se coaduna, dessarte, com o génio especulativo e adorante do oráculo; por palavras maiores, ou por vocábulos melhores, o lavrar é para a terra, e para a terra somente; o orar e o templar são laborar e trabalhar, mas dum elóquio superior.
E cordialmente, não concordas em cor, amigo leitor? Mas é que entrámos e penetrámos, arteiramente, na essência de «Ressurreição»... Arriscamo-nos, porém, a cair dentro dos poços quando olhamos para os orbes, mas é que «os olhos foram feitos», segundo o escritor, «para contemplar os astros»...
Rectificando e concluindo, dois substantivos, perspectivas, ou mundividências são presentados e confrontados nesta obra que motiva: e ao positivo e material do mundano e S. Tomé se subleva, num enlevo, o ideal imaginário de Maria ou da Magia. A voz do coração, como queria Pascal, fala sempre mais alto, ou mais além, do que a voz materialista da «res» ou da razão. Em termos psicanalíticos, alfim, a superfície consciente está contida no «iceberg» e na praia do votivo inconsciente; o similar e simulacro vão mais longe, talvez, do que o mundo sensabor, ou para findarmos, nós outros, da maneira metafórica: nós do Sol fazemos vulgo, e o patrão quer o patrono; quer o livro o multicor, e o alunado, liberal, quer o alucinogénio.
II
Ora sus, amigo leitor. E muito ânimo, eia, mais Alma para a viagem. Na primeira parte da nossa comunicação, nós topámos, afinal, com dois génios opostos e perfeitamente complementares: o génio de Apolo ou do dia, e Diónisos, o génio da nata ou da noite.
Atenta agora, ó recipiendário, na receita seguinte: o Autor de «Ressurreição» era, temo-lo visto, um simbólico de raiz. Tão de raiz poeta, para ele, como para Teixeira de Pascoaes, o Sol é, no poderio, o esplendor e o fulgor da vulgaridade. Em versada conversa com Lívia, no início do romance, Félix asserta e declara, certeiro, que a valsa «é a única dança em que há poesia», e continua, no carme, dizendo que «a quadrilha tem certa rigidez geométrica; a valsa tem todo o abandono da imaginação.» Por vocábulos conformes e prestes, o nosso leitor, o ouvinte ledor, assimilado já deve ter, num contexto similar: o mundo apolíneo do dia é o «topos» da lógica, da geometria, do trabalho esforçado, aturado e matemático, enquanto que o mundo dionisíaco da nata ou da noite é o mundo das imagens, da Magia, do delírio criador e da Utopia das crianças; é, numa palavra, uma logia criativa, ou melhor, criacionista. Se permitido nos for comparar os dous comentos, em linguagem familiar diríamos destarte: a quadrilha está para a marcha militar e o «topos» matemático assim como está, a valsa dos amantes, para a baila dos poetas, para as feéricas Fadas, para a desordem multicor duma Lua que alucina.
Toda a criação mergulha, desse modo, as suas raízes no imo e no inferno, ou seja, no limo ou na lava inconscientes. Se a imaginação era, para Malebranche e o Cartesius, a «louca da casa», mais perto ficaríamos da poética verdade ao acordarmos e concordarmos com Hegel: «o mocho de Minerva», com efeito, «só levanta voo à hora do crepúsculo».
Temo-lo visto e divisado, no conspecto e no aspeito: Lívia, para o ledor, é uma «persona» e personagem fantástica. Ao representar e presentar o mundo da Poesia, re-apresenta, também, a escola sideral dos românticos infrenes. Nas palavras de Machado de Assis, o amor, para ela, é «um êxtase divino, uma espécie de sonho em acção, uma transfusão absoluta de alma para alma»; ao contrário do sonho e das visões, o amor e a sextilha, para o consorte filisteu, «era um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal, sem ardores, sem ilusões», e nós aditaríamos: são ilusões e mitomanias que comandam, com sabor, o mundo dos poetas. Há mentiras, e há Mitos, muito mais reais do que o mundo das pedras. A pedra é o estado sólido, as asas sibilinas pertencem, com efeito, ao Azul e às visões. Ao falarmos de Lívia, visionaremos, desse modo, os dionisíacos vapores; falaremos, «ipso facto», da lisura do Azul.
Só um poeta tem Alma ou tem ânimo para compreender ou preender os utópicos amores, mas os grandes e fantásticos poetas, é tempo de dizê-lo, os grandes poetas raramente se casam... No poeta, no filósofo, e no homem religioso, a capacidade cognitiva, ou melhor, o sentimento metafísico, ultrapassa em muito e muitíssimo a reserva necessária para o exercício e ofício da vontade; nos outros homens, contudo, a vontade é soberana e o conhecimento, alfim, é um mero secretário, ou melhor, subserviente.
Toda a Filologia é solidária e visionária da melhor Filosofia; toda a palavra, como asserta o Cândido Franco, demanda a Teoria. E foi essa paixão pela ciência teorética que fez com que Tales de Mileto caísse nos buracos, ao templar o pensamento e contemplar as estrelas. É claro que hoje, ao invés do que acontecia no grego milagre, a ciência material é meramente utilitária, isto é: no sábio da Grécia, subentendido e implícito in «Ressurreição», havia a especulação e o tecnismo; na «res» e na razão da televisão e computador habita, que eu bem vi, o sensabor e leviano do laicismo e tecnicismo... Ora o mundo da tecnocracia é, como impresso deixámos in «O Livre e a Lavra», o mundo da economia, da vontade, e do princípio de individuação; mas o mundo de que nos falam S. Francisco de Assis e Machado de Assis é o «topos» do espiritualismo, da pessoa, e das artes liberais. Ora, essas artes liberais, por natureza e definição, requerem o Baco ou Liber Pater, as artes liberais demandam Liberdade.
Esse, pois, é o pensamento de Lívia, que estudamos e louvamos à medida que avançamos. Aqui chegado, pergunta o ensaísta: se enfastia, se aborrece, e se anoja o ledor? Estimula-nos, em vez disso, e nos alenta o leitor. Seja apurada, divulgada, e completada a colação. Com Alma acertaremos, nós iremos, dessarte, no ânimo das letras. Prossigamos, entretanto. Para citarmos o Autor, a nossa heroína «delineava uma vida independente de todas as escravidões sociais, vida exclusiva deles, cheia de todos os prestígios da poesia e do amor.» Por vocábulos outros, a companheira do herói sonhava acordada, ela andava, como dizem os franceses, em «rêve éveillé».
Do sonho e das imagens trataremos alfim, na sua ligação com a Língua e a Literatura. Inda há pouco, nós dissemos que mergulha, a criação, no limo e no inferno. Para Machado de Assis e os poetas seus pares, sempre temos, afinal: a vida, no ínfero, a Obra, como flor. Se os poetas e Lívia se alimentam, com arte, do onirocriticismo, aqui digamos que o mágico e maravilhoso é um mergulho na Mater, no interior e no imo da terra. Como explanam alquimistas, o vitríolo da Agricultura Celeste é aquele que visita, bem sábio, o interior da terra; ratificando e rectificando, lá encontrará a Pedra escondida. Ora o sonho é sempre esse retorno ao antro das Mães, é uma mística e mistérica experiência que nos devolve, inteiramente, ao racimo e à raiz da radicalidade... A famosa descida do Iniciado aos infernos, a descida, outrossim, de Orfeu ao plano ínfero, é gnósica e simbólica da viagem no Além. Siderado aqui não fiques, ó amigo e amável leitor: quem vê a Deus é porque morre, e morrer, afinal, é ser Iniciado. Queremos dizer, aqui, o seguinte e o requinte: o candidato aos Mistérios Menores, ele vive a sua Gnose um pouco como o poeta, como o rapsodo e romântico sonhador experiencia o seu sonho. Ora o que faz, nas artes e partos, o mesmo poeta, é transportar, ou portar, o onirismo e a anarquia nocturnos para a vigília do Sol e vida prática...
Com razão e maestria, escreveu Voltaire que morria todas as noites para voltar a ressuscitar no dia seguinte. E foi preciso chegarmos aqui, amável leitor, para atingirmos o nódulo, a nota, o miolo da questão. Senão, leiamos o que foi impresso na página 65 de «Ressurreição», na edição de 1999 da Universitária Editora:
«É certo que me ressuscitaste, continuou o médico; e se o futuro me aguarda ainda alguns dias de felicidade sem mescla, a ti só deverei, minha boa Lívia; tu só haverás feito o milagre.» Que o mesmo é dizer: a criancinha, para S. Paulo, é o que nasce de novo. Que o mesmo é dizer, outrossim: da vida prosaica da vontade, ou competitividade, o enamorado fantasista foi transportado e sublimado até à vida iniciática; da Gramática positiva, sensabor, e meramente utilitária, o médico foi, com presteza, elevado e transportado até ao mundo da Poesia, da Guematria ou da Gramática frondosas, generosas, ou digamos generativas. Em termos teosóficos, nós diríamos que, na primeira parte do romance, que estudámos, Félix passou, magicamente, do amor do poder para o poder do Amor. Tal é a «quididade», a verdade, afinal, de todo o romantismo. Em termos platónicos, também, Félix passou do mundo das aparências para o mundo das essências: foi lá que Carl Gustav Jung foi buscar os arquétipos e mitemas da simbologia, o fundo construtor do inconsciente colectivo. E em termos similares de Heidegger, o Martinho, da charlatanice e da mentira da charla, o nosso herói foi sublimado para a comunicação comunial e autêntica, para a linguagem fabular do poetizar primeiro. Poesia, destarte, é mais e muito mais do que a mera comunicação; como observámos ao tratar de Ulisses Duarte, ela é uma caroável, conceptista, e fabulosa Eucaristia...
É tempo, agora, de findar. Se Machado de Assis e Gomes Leal andavam ébrios e loucos pela ambrósia da videira, andavam bêbedos, também, do sangue divinal. E convidado, que fomos, para o banquete, elaborámos, nós outros, o ágape agora. Recebemos o néctar de Machado de Assis; agora damos, ao leitor, o corpo da notícia. Terminamos, pois então, com um comento e pensamento que muito nos agrada, ao contemplarmos a rosa e o fulgor das primaveras juvenis: quer a Gnose a geração, e generosa é sua génese, mas é preciso, para ser Génio, digerir a diegese.
Tomar, cidade templária, 19 / 5 / 2000