CÂNTICO IMORTAL
Noite fria, e os telhados da vizinha Lisboa
martelando nos cérebros doentes dos psicopatas europeus
incluindo a calva careca do Papa João Paulo
último freak vindo da Polónia
com o rádio dos químicos e a bomba de neutrões
pendurada na sotaina cor de preto de azeviche nocturno
A noite polvilhada de rosas pretas como a barba feiticeira
dos poetas ameríndios e a boina do Guevara sempre pronta
a distribuir panfletos anarquistas no concílio de Niceia,
o óleo das garagens intestinas de Niceia ou da praia de Nice
onde consta que eu fui apanhado com o meu Black Limousine
a desencaminhar os meninos imberbes rapazinhos imberbes freakzinhos imberbes
e a inocular-lhes no sangue mais uma vez o vício da Poesia,
esse farol inextinguível como duas enormes placas de haxixe
confundidas na fronteira da mama onírica da vizinha
com o nariz do Super-Homem com bombons de chocolate
Mas desde já confesso há muito tempo que o açúcar
vai roendo a cárie dentária dos pacifistas
envergonhados da sua enorme dignidade sexual
acima das orelhas de gato orelhas de abutre e garras de leão
Tudo à mistura com o ópio do Coleridge
que rimaria muito bem com a pederastia de Rimbaud
se não tivesse chegado já o tempo dos assassinos descobridores de petróleo
os assassinos carecas assassinos todos nós
De modo que eu e Florbela demos as mãos negligentemente
numa caverna de Nova-Iorque e domesticámos as pombas
com a nossa loucura celestial
As pombas voaram mortas nos livros de compêndio de Língua Portuguesa
E hoje já ninguém pode perceber como é que as vísceras da pomba
foram engolidas pelo tempo dos mártires dos hippies
sorridentes e vagarosos como eu
De modo que eu e Florbela Espanca demos as mãos eu ia a dizer
E com aquela intimidade resultante do sangue como só dois poetas sabem ter
Percorremos as ruas de Nova-Iorque na nossa nudez inextinguível
Depois fomos a todos os bares de putas da cidade
e envenenámos as putas com bolos feitos duma massa muito especial
Aquela massa era de família tinha ensinado a composição
o raticida Sá-Carneiro deitado nas camas de Paris
e pintando as unhas com um verniz muito especial
Os bolos eram feitos de arseniato de estricnina
não tardou que as putas morressem vomitando o arseniato e à mistura com a droga
Os dois enormes colhões de Baudelaire
cheios de farinha de batata e bons para alimentar
a sociedade americana durante os dois próximos séculos
Não tarda que as pessoas voltem a Poesia contra a sociedade ocidental
e os poetas fundem a República do Amôr com um jardim de recreio
reservado às prostitutas e aos homossexuais
A sociedade ocidental é o cancro de Marte
Os drogados de haxixe inventaram uma música poderosa
para dançar o "Twist and Shout" na peida de Hare-Krishna
Eu próprio sou a peida de Hare Krishna
E os últimos versos da música das estrelas
bailam na boca, na boca e no esófago
de todos os camaradas loucos do hospital Júlio de Matos
recitando todos em coro as últimas linhas do meu "Cântico Jovem"
diante da boca esclerosada do Computador realíssimo o príncipe dos loucos
Eu sou o Príncipe e o chefe do computador
e ordeno que todos os dias ele sirva bolos de mel
e água de colónia à base de batatas
Aos cérebros atrofiados pela propaganda televisiva
e pela gaguez política dos imperadores de Portugal
Florbela e eu sabíamos muito bem que nesse mesmo momento
uma terrível conspiração se estava a travar
nas retretes do Vaticano contra a nossa Poesia
E os padres estavam lá todos a rasgar as batinas
e escrevendo sonetos à Marília do Bocage
Mas não tinham sorte nenhuma porque a mesma Marília
era a Nossa Senhora dos Psicopatas Conceição
Virgem pura e lmaculada ou como hei-de dizer
parida por intermédio da bomba de neutrões
E a minha Poesia é uma bomba que há-de rebentar na carcaça de Amon-Rá
E neste preciso momento Jesus de Nazaré
está a dizer que me ama e que me odeia
Buda está a dizer que me ama e que me odeia
Hare Krishna está a dizer que me ama e que me odeia .
Maomé o moreno está a dizer que me ama e que me odeia
Os íris o egípcio e a sua esposa Ísis a impenetrável
estão a dizer que me odeiam mas também me amam
Só a esposa do Ramalho Eanes me odeia sem me amar
E eu vou entornando o capilé da minha bica
sobre todos os presidentes e sobre todos os políticos
A única política reconhecida pela Poesia é o Amor Celestial
Mas essa prática de vida não chegou aos campos de concentração
nem ao cérebro atrofiado dos papas vestidos de púrpura
A sociedade luciferina há-de voltar sobre as nossas cabeças
e conduzir-nos novamente ao reino de Heliópolis
aos deuses criadores do maná e das flores
E o Homem há-de ser outra vez
puro como as pérolas e ousado como as águias
Há-de voltar o reino de Aquário
E os rapazes e as meninas não digo raparigas digo meninas
Hão-de de novo superar as escolásticas noções do Paraíso e do Inferno
E hão-de de novo ser ousados e saber
que não existe bem nem mal nem dia nem noite
mas sim a fecunda possibilidade de o Homem se ultrapassar a si próprio
e conquistar os frutos da ciência da única bola de fogo
que existe nos nossos corações sob a forma de um pentáculo
Esse pentáculo há-de invadir o mundo com o seu raio de Mitra puro
Os homens deixarão de ser homens as mulheres deixarão de ser mulheres
Apenas serão uma bola de fogo voando e procriando
para além dos seus próprios limites
E o céu deixará de estar separado da terra
inventaremos moradas de gaze para domesticarmos
os humanos ou os animais abaixo de nós
tal e qual como fizeram connosco os titãs e os gigantes
há milhões de anos atrás
Na verdade os nossos olhos abriram-se com o fruto
da árvore da ciência do bem e do mal
e deixámos de ser animais puros e selvagens como
os leões domesticados nos jardins do Paraíso
E foi então que começou o sexo Jeová
E a tua maldição acompanha a bem-aventurança
dos poetas roubadores do fogo astral
Mas o suicídio dos malditos é uma nódoa de vinho envenenado sobre
a bata branca de menino da escola do menino que eu já fui
Na verdade há que proclamar a vinda dos gigantes dos titãs luciferinos
Só que então deixará de haver divisão
como já disse entre a água e o fogo
E seremos todos Luz ardendo pura no meio da Via Láctea
Sóis imensos de Luz pura ó pura Luz minha única deusa
Levanta o teu véu e conduz estes bebés atormentados
pelo sexo a uma praia que só se confunda com a tua Beleza
A um jardim onde a Poesia fale de flores entaladas nos ouvidos
e as próprias árvores se virem ao contrário
para receberem a água directamente dos vastos capilares
provenientes da barba de Deus hippy maduro
e hiper-excitado pletoricamente com o ódio e com o Amor
que o mundo lhe dá
Que as estrelas lhe dão com o seu movimento
Que as ondas transparentes da água do mar
lhe dão com o seu sopro o sopro divino
Que o sexo lhe dá com orgasmos sucessivos orgasmos transparentes
o orgasmos cristalinos autênticas explosões de fogo natural e primitivo embebedante Sol
imenso dos egípcios no meio das florestas
imensas e selvagens que continuam a ensinar aos homens
lições autênticas de Amor natural
E cada vez que um animal na floresta recua diante do fogo
ou ataca uma pantera ou cai morto cheio de sangue
Há uma enorme dor de cabeça nos cérebros televisivos
e cada vez que cai uma rocha nas ondas do Pacífico
deixam de ser pacíficas as peixeiras e arranham as varizes
E as varizes deitam sangue e o sangue invade as docas
E as docas expelem sangue pelos canteiros da cidade
E o sangue invade as bocas e já tem sabor a mel
E os seios deitam sangue as raparigas deitam sangue
Há tanto esperma tanta raiva tanto sangue tanto mel
E tanto cuspo e tanto estrume e tanta merda no Sol-pôr
E as vaginas deitam sangue desfloradas abençoadas hiper-excitadas sensíveis até à
explosão termoeléctrica dos jovens rapazinhos e
a feliz gargalhada de velhos carecas
ecoando na memória de todos os hippies
Esta noite vamos todos fazer amor com as estrelas
e cantar a bebedeira de Luz astral que nos invade
Vamos todos mostrar à política e à droga e à televisão e à guerra interstelar
e às carecas dos velhos professores que choram e
resmungam e arranham as varizes
traduzindo para francês os meus poemas psicopatas
As migalhas do meu corpo que são distribuídas
pelos carros da mente pacifista e pan-sexual
O doce Cristo aparece com uma mochila às costas
sai de casa e vai de mota explorar o útero da sabedoria egípcia
Ainda não me esqueci da minha flor que é bela
torturada mas tem laivos de carne pura
Se é bela eu chamo-lhe Florbela e então espanco-a
e retiro as suas pétalas
Diante duma sanja cantando hinos ao marquês
da Revolução Sadicomania deus Pã Osíris Belo
I hope my next revolution sittingon a cornflake
and drinking my orange and je vais boire le regard de Ia Beauté
Je vais faire comme les poissons faisaient dans leur état divin
Je vais être divin divin comme Ia lumière cassée dans un horloge d'or pur
Ah Baudelaire Baudelaire os homens chamaram-te louco e tinham razão
Têm sempre razão eles pensam que sempre têm razão
e encerram os poetas em hospícios de atrasados mentais
E os homens hão-de compreender aquilo que eu digo quando forem puros como feras
encerradas em hospícios de atrasados mentais
Não digo louco Baudelaire não digo louco
pois só tu com a tua alma de profundis
poderás compreender o enorme raio de luz
que resulta do relâmpago e que queima os intestinos
e que queima a visão e cega o olhar daqueles
que ousaram olhar de frente para o Sol
e depois tornaram-se cegos e tornaram-se vegetarianos
e mudaram-se para o Oriente onde agora estão todos reunidos
abençoando a minha alma e as minhas visões místicas
E na verdade eles também te abençoam rapariga ensimesmada rapariga endiabrada
rapariga apalavrada
Estarás tu a pensar que a profecia dos poetas
resulta dos seus pêlos dos seus pêlos demoníacos
Não não digo isso ou digo isso e um pouco de visão interior e pura
comme le regard de Ia Beauté le regard de Ia belle Beauté
e as ondas da praia noite escura fria simples
simples e pura como só uma praia pode ser
Estamos sós enfim enfim sós e depois do barulho dos dias
encantamos os perfumes e cantamos com as aves
bebemos o mel que eu te dei há muito tempo
e as estrelas brilham nos nossos corações no nosso plexus na nossa alma
Na nossa alma não já não digo ninho
porque os teus cabelos se ligaram com os meus
e formámos uma hera de partitura musical
e abençoámos os músicos que vinham de Lisboa e nos falavam das boîtes
Eu súbito sou eu eu súbito posso dizer eu sou
eu sou eu sou aquele que sou
e nada mais conta para os nossos colares
Enrolo um novo cigarro deito-me no sofá
conto as missangas que tu tens para me oferecer
e parto de novo para países distantes para países longínquos
levo nas mãos o calor das tuas tranças
e muitos dedos anfíbios
muitos dedos assassinos
Olha filha espeta-Ihe um punhal
e depois pinta os lábios
com o sangue proveniente
do meu sexo nauseabundo
In: LOAS À LUA
Universitária Editora, Lisboa, 2000