PAULO BRITO E ABREU
"Poemas do Silêncio" de Fernando Botto Semedo,1996

Fernando Botto Semedo e Paulo Brito e Abreu. Foto: TriploV/18.3.2002


«Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade.» Emmanuel Kant

«O silêncio é uma asa de deus», nos adverte Botto Semedo no portal ou no pórtico da poética sua. Razão tínhamos nós, Amigo ledor, quando auscultando, ou escrutando, o seu leme e sua letra, falámos, em parabém, do sentimento metafísico, ou melhor, de uma Ontologia ou sabedoria de poéticos valores. É da Poesia, pois, deste homem e deste Nume que vamos tratar; e siga a barca a via aprilina, e sejam ventos favoráveis à viagem metafórica.

Em primo lugar, o Poeta guarda silêncio perante as imagens ou ídolos de deus, porque o lema e emblema deste «liber», acima de tudo, «é uma folha branca / Onde escrevo com tinta branca / O infinito de um horizonte invisível». Queremos dizer: postado, fielmente, à porta do Logos, montado, feericamente, no «cavalo azul do silêncio», a viagem realizada em púrpura navio siderou, completamente, o coração do Poeta; os «poemas infinitos / E incompreensíveis», qual drama ou psicodrama de proféticas alturas, são o relato mágico da exclamação, ou melhor, da oração e do excurso. Botto Semedo tem, para gáudio nosso, a ciência ou consciência preclaras de que a fonte da Poesia é qual Teatro do Ser, que as imagens do sonho lhe fornecem o caminho por onde rema, por onde ruma, em romaria, para o Amor.

Façamos, aqui mesmo, um reparo crítico ou críptico de alguma relevância. Sabemos que escreveu, um esteta e estudioso, que Botto Semedo recusa o diálogo, isto é, a comunhão humana ou cristiana com o Outro. Obnubilante, oh bem flamante engano!!! Na linha de Lacan, Semedo sabe, melhor do que ninguém, que «o inconsciente é o discurso do Outro», que toda a leitura, dessarte, é comunhão e comunicação: o que este Poeta refusa e recusa, com hermético rigor, é a charla e mundanismo, ou melhor, a prostituição da Palavra. Dilucidemos, melhor, o nosso leitor: existe, o silêncio, como «limen» ou limite da Palavra; esse «limen» é porta ou liminar para os «milhões de sóis do silêncio», para o manuscrito ou «infinito de jardins» da meta intangível, quer dizer, duma invisibilidade. Não andaríamos, destarte, muito longe da verdade se aventássemos que o silêncio, em Botto Semedo, é qual forma de oração; e tocando nos paradigmas da Ontologia de Heidegger, é uma «ek-stática» insistência na verdade do Ser: e eis, aqui, o sonho, como modo de inquirição ou escrutação duma fundada e acurada hermenêutica, eis a Poesia bem fora da linguagem da tribo.

E avancemos, nós outros, traduzindo e eduzindo: «O sol do silêncio são nocturnos mares de luz azul / Pela alma de um secreto universo íntimo / Iluminado de ocultas passagens por onde / Bailam tocadores de cítaras de abismo». Redarguirá, com ânimo, o leitor de Kierkegaard: quanto mais pessoal, mais universal; e estamos, todos nus, em carne viva, perante Deus, a noite e as estrelas. Isto é: se a comercialização ou prostituição da mesma Palavra nos leva a atraiçoar e esquecer o fundamento do Ser, Botto Semedo procura, apenas cura, do Verbo em estado gnóstico, ou melhor, da Graça eucarística da estética letra. Se, deveras e na verve, os livros de Botto Semedo não são venais, ou não se vendem, é que a Poesia, nele, é para agradar e gratificar, é que a serpente mercurial, no mesmo ele, não se traslada nem degrada em cifrão comercial.

Na seara verde-clara, continuemos em safra: com palavras este Vate edifica o tabernáculo; e, portador duma liga, ou da linguagem dos pássaros, ele é guardião indefectível, indesmentível, da casa do Ser. Aqui chegado, o leitor já deve ter apurado que estamos, com «Poemas do Silêncio», perante uma Teoria, ou Logia, da Verdade, a Verdade imarcescível do «ex-sistere» e do êxtase. Ou melhor: de tão negra, ou tão nubente, que é a Morte, ela se volve em «secreta amante» de hálito doce «e lábios femininos»; a Morte e o sonho, para Botto Semedo, lhe surgem paramentados com hábito ou ádito de monja; e o alvíssimo paramento, o Poeta o baptiza e realiza com o nome do silêncio. «Escrever silêncio», nos explica, ainda, ele, «é amar o branco / E todos os rostos do silêncio / Que florescem pelos poentes brancos do espírito». E, noutro lugar, não claudica, quando informa: «No coração do silêncio há uma alva fonte / De água do infinito e todas as crianças cegas e caiadas / Das planuras negras do nada / Entoam árias de uma eternidade de luz branca / Pelos canteiros das galáxias brancas / Em abóbada de derradeiro».

É tempo, agora, de findar. Pois da fonte emana o Verbo, e toda a verve busca a fonte. São as crianças cegas, isto é, videntes ou inteligentes, que entoam, seguramente, as árias do porvir; as fábulas virgens do Cordeiro e da cordura dimanam, sem dolo, da boca das crianças. Foi, portanto, sob o signo de Orfeu, e não na signa d’ateu ou Prometeu, que os lábios de Botto Semedo oscularam o Firmamento e suas mãos, no saltério, dedilharam a Lira. Esta, portanto, a sua leira; esta, no entanto, a sua mente ou mensagem. Pois, se a linguagem dos Poetas é a casa do Ser, é com a cifra da Poesia que se chega até ao «padma», é com a nau do silêncio que se procura - ou se inaugura - a Alma do Mundo. A isso eu chamo, a isso ele chama, o professor, desocultar a Palavra, e proferir, sem medo, a parábola. Para o bem. Para a meta, querido Amigo. E para sempre, até ao fim.

P. S.:Acima de tudo, a Verdade é uma revelação, «aletheia», ou des-envolvimento do Ser. Sentados ao derredor da mesa da Palavra, o corpo dilacerado ou esquartejado de Fernando Botto Semedo dá origem à linguagem como fábula ou poetizar primeiro: o silêncio cultual com que nós o manducamos é uma oração que em nós endereça o sentimento da comunidade, quero dizer, da unidade ou mónada comum. Abandonemo-nos, portanto, à revelação do ente, pois Botto Semedo foi chamado pelo Ser para coadjuvar e para guardar a sua Verdade; a sua função, destarte e na arte, é a de um vigia ou de um escuteiro, ou melhor, a de um escuta ou sinaleiro. É só escrutando ou escutando o que anuncia a divindade que poderemos prender, ou compreender, o voto imenso e a renúncia deste Poeta; efectivamente, foi há muito que ele pôs de parte a vida prática e pragmática, submetida e dirigida ao princípio de individuação; há muito, há muito mesmo que, na epiclese ou na eclésia, Botto Semedo olvidou o exercício e ofício da própria vontade, de tal modo que acertaremos, sem dolo, ao assertar: não trata, este livro, do homem parcial, mas sim, em certa medida, numinoso e universal; o que move este Poeta não é o mundo vário, sensível e fenoménico: é sim a forma, a Utopia e Arquetipia de «Anima Mundi», ou melhor, da tónica e platónica Ideia.