I
Fernando Botto Semedo – e nominemos nós ora: deveras ele escreve os seus
livros com sangue; e memoremos, dessarte, a assertiva nietzschiana. Ou
melhor: ele escreve a partir do Caos inicial; há «poemas escritos / Por
monarcas de soro e gelatina gelada / Do ignoto.» Que ignota fauna,
oculta faina. Se a Ludoterapia, como vimos, é Logoterapia, relembremos o
que aduzimos em torno, e acerca, de Fernando Guilherme Azevedo: o
Averno, ou Inferno, é o princípio de tudo; Botto Semedo é portanto um
Poeta de raiz. O rapsodo, na verve, é senhor do seu Caos; ele
transmuta-o, deleite, na lisura do Azul. Mas seja Canho, ou seja Cosmos,
o ofício do Poeta é de fora, e é forâneo; a profecia, aqui, é Professora
e Provençal, e a Anarquia, deveras, a profissão de fé. Botto Semedo,
desta feita, é rejeitado, no abjecto e no egresso ele é sempre ejectado.
É irmão de João Belo, digamos solerte, em surreal-abjeccionismo: para o
Autor de «Narciso», com efeito, «é terrível ter valor sem ter sido
convidado para ter valor»: para apreender, ou preender, a Poesia
Fernandina, especulemos no espelho, pratiquemos a «Poiesis», relevemos,
no lustre, o Português ilustre.
II
E
literariamente, e literariamente, lavorando em lavaredas, Fernando
escreve, (co)movido, pela força da Paixão. E crucial é pois o Verbo, e o
pensamento, na Cruz, é cruzada afinal; sempre e sempre, labutando, por o
cruzeiro na liga e a Língua Portuguesa. E isso é Graal e pascoal, e
desde Pascal, Amigo ledor, asseverando em Psicanálise, «o coração tem
razões que a razão desconhece». O engodo e o desejo é o desejo do Outro,
e é um Rei, na serpente, o subsolo inconsciente. Quero eu dizer: a Frol
é pulcra, e é esmerada, mas é do esterco e do estrume que a Rosa se
alimenta. Ou melhor: se o mentar é da razão, é mítico o mentir; os Numes
são secretos e os nomes são segredos. Parafraseando, em franco, o
Fernando Pessoa, o Mito é um nada, mas esse nada, aqui, tem a força dum
Tudo. Então ouçamos, dessarte, o ministério menestrel: «A maternidade
dos nomes desconhecidos / Desenhava pequenos pássaros sem cor / E sem
asas, levantando voo com a dor / Da minha alma emparedada em liberdade,
/ Alucinada em palavras e cimento de vozes.» O móbil e motor é parábola
deveras, o pensamento, aqui, é qual a morte-movimento. E o rapsodo e o
racimo, à semelhança de Rimbaud, concorda, agora, num acorde, afinal: eu
não penso mas sou pensado, a verdadeira vida é mais que nunca ausente.
E, na Ludoterapia, somos todos siderados, e vivemos enfeitiçados por Véu
de Maya mendaz. Que o espectáculo é o espéculo, e perpassa, aqui, por a
Obra especial do Poeta Fernando – e sejamos pois o espectro, e
especulemos, então, por o «Carnaval de Espelhos», e eis a vez e a voz, e
eis o «Topos» e tropo da lucubração.
E
ora muito, muito bem. Entre o canto e o conto, Botto Semedo escapa, por
Magia, da Maya transitória e do mundo fenoménico; do que o espaço, o tempo e o princípio da causalidade…
Uma coisa, crucial, é a Crítica da Razão Pura – e cousa outra, em
credência, a Crítica, ou a cripta, da Prática Razão. Que o escopo desta
Obra são Arquétipos, os símbolos e Génios dos arcanos… As parábolas, a
oblata, os Mitos e as fábulas. Que a «Imago» é como letra, Amigo leitor,
o inconsciente é estruturado como uma linguagem; eis o que ensina,
estiliforme, o Jacques Lacan. Pois, de acordo com Rimbaud, o Eu é um
Outro acima de tudo: a expressão do inconsciente é, sobremaneira, a
expressão e unção do sobrenatural. Pois pensar, aqui, é exprimir e
espremer – e atingir, e tanger, o Intelecto e a Forma. O fenómeno,
portanto, é filodoxia; a Ideia, no «Fedro», a Filosofia. Quanto mais
notórios forem os progressos da Física, mais premente, e providente, é a
necessidade Metafísica – assim o disse, pra sempre, o chamado
Schopenhauer. E assoalha, no carme, o Sujeito cognoscente, o seu puro e
vidente, o clarividente olho do mundo: «Lembrais-vos dos contos que vos
eram / Destruídos de noite, numa enorme nave / Do inominável?
Lembrais-vos daqueles / Segundos de sangue esquizofrénico e / Tardio na
eternidade?»
Eu remembro, e eu relembro. Eu rememoro, um Poeta, que sentia a «Dejection»,
que ejectava, alfim, até às Galáxias..
Em Botto Semedo
eu assisto, no «Dasein», ao desenredar, e desenrolar, da Substância e da
estância, e eis, aqui, as máscaras do Ser, o eis-aí do Ser. Pois eu «Via
como o leite de Deus envernizava / O luto do meu amor, o seu destino /
Rasgado e em puro êxtase por abismos / Encenados pelo sangue infinito de
/ Uma santidade vazia.» A santidade é pois vazia, os monarcas são de
soro e o sangue é esquizofrénico: se o prensar é dar à estampa, o pensar
é pôr um penso na ferida narcísica. E se o sangue dos mártires é semente
de Cristãos, a Poesia é como a purga, a Poesia é qual a forma de
evacuação. Vem agora, à colação, a Catarse aristotélica, a desinfecção
moral do Pierre Janet. Ou melhor: o livre é pois o livro; se a memória é
das origens, a Saudade é do futuro, e a infância é pois segredo ainda
por cifrar. Jamais olvidaremos, aqui, o automatismo psicológico, a (es)tese,
e o estudo, do Parisino Psiquiatra. Mas não nos iludamos, Amigo ledor:
quem criou a noção de escrita automática foi William James, o Escritor,
o Filósofo e o letrado norte-americano – e divisamos, alfim, o
paradísico, o nado, e os Campos Elísios; pois o Logos, aqui, é
psicoterápico, a escrita é qual a forma da Logoterapia – e o psicodrama
é glosar, e a Psicanálise é deveras a «cura pela fala».
E
ao relermos as endechas de Botto Semedo, remembramos, também, os
artifícios e ofícios de Fernando Henrique de Passos, o Arquitecto e
artilheiro de Fernando Guilherme Azevedo. É que em todos estes Vates, a
vida imita a Arte, e não e nanja o inverso. E pensamos, alfim: Botto
Semedo não é louco, mas sente-se alheio à polícia- «politeia». É
estrangeiro, e o estranho, nas Ideias fictícias; vive mundos, e as
vidas, que são as mundícias. Que é o escol, e a escola, da civilidade; e
são os lemas, e temas, da sábia Saudade. E diria o João Belo, por isso
clama o estro, e é Português, a isso se chama o nascer «Outra Vez».
Armação de Pêra, 27/05/2009
PAULO JORGE BRITO E ABREU
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