Paulo Brito e Abreu..........

FERNANDO BOTTO SEMEDO: A FIGURA,
O FULGOR E O PRESTE «SANGUE EM FLOR»

«O inconsciente é o discurso do Outro.»

Jacques Lacan

INTRODUÇÃO

 I

 

Fernando Botto Semedo – e nominemos nós ora: deveras ele escreve os seus livros com sangue; e memoremos, dessarte, a assertiva nietzschiana. Ou melhor: ele escreve a partir do Caos inicial; há «poemas escritos / Por monarcas de soro e gelatina gelada / Do ignoto.» Que ignota fauna, oculta faina. Se a Ludoterapia, como vimos, é Logoterapia, relembremos o que aduzimos em torno, e acerca, de Fernando Guilherme Azevedo: o Averno, ou Inferno, é o princípio de tudo; Botto Semedo é portanto um Poeta de raiz. O rapsodo, na verve, é senhor do seu Caos; ele transmuta-o, deleite, na lisura do Azul. Mas seja Canho, ou seja Cosmos, o ofício do Poeta é de fora, e é forâneo; a profecia, aqui, é Professora e Provençal, e a Anarquia, deveras, a profissão de fé. Botto Semedo, desta feita, é rejeitado, no abjecto e no egresso ele é sempre ejectado. É irmão de João Belo, digamos solerte, em surreal-abjeccionismo: para o Autor de «Narciso», com efeito, «é terrível ter valor sem ter sido convidado para ter valor»: para apreender, ou preender, a Poesia Fernandina, especulemos no espelho, pratiquemos a «Poiesis», relevemos, no lustre, o Português ilustre.

 

II

 

E literariamente, e literariamente, lavorando em lavaredas, Fernando escreve, (co)movido, pela força da Paixão. E crucial é pois o Verbo, e o pensamento, na Cruz, é cruzada afinal; sempre e sempre, labutando, por o cruzeiro na liga e a Língua Portuguesa. E isso é Graal e pascoal, e desde Pascal, Amigo ledor, asseverando em Psicanálise, «o coração tem razões que a razão desconhece». O engodo e o desejo é o desejo do Outro, e é um Rei, na serpente, o subsolo inconsciente. Quero eu dizer: a Frol é pulcra, e é esmerada, mas é do esterco e do estrume que a Rosa se alimenta. Ou melhor: se o mentar é da razão, é mítico o mentir; os Numes são secretos e os nomes são segredos. Parafraseando, em franco, o Fernando Pessoa, o Mito é um nada, mas esse nada, aqui, tem a força dum Tudo. Então ouçamos, dessarte, o ministério menestrel: «A maternidade dos nomes desconhecidos / Desenhava pequenos pássaros sem cor / E sem asas, levantando voo com a dor / Da minha alma emparedada em liberdade, / Alucinada em palavras e cimento de vozes.» O móbil e motor é parábola deveras, o pensamento, aqui, é qual a morte-movimento. E o rapsodo e o racimo, à semelhança de Rimbaud, concorda, agora, num acorde, afinal: eu não penso mas sou pensado, a verdadeira vida é mais que nunca ausente. E, na Ludoterapia, somos todos siderados, e vivemos enfeitiçados por Véu de Maya mendaz. Que o espectáculo é o espéculo, e perpassa, aqui, por a Obra especial do Poeta Fernando – e sejamos pois o espectro, e especulemos, então, por o «Carnaval de Espelhos», e eis a vez e a voz, e eis o «Topos» e tropo da lucubração.

 

E ora muito, muito bem. Entre o canto e o conto, Botto Semedo escapa, por Magia, da Maya transitória e do mundo fenoménico; do que o espaço, o tempo e o princípio da causalidade… Uma coisa, crucial, é a Crítica da Razão Pura – e cousa outra, em credência, a Crítica, ou a cripta, da Prática Razão. Que o escopo desta Obra são Arquétipos, os símbolos e Génios dos arcanos… As parábolas, a oblata, os Mitos e as fábulas. Que a «Imago» é como letra, Amigo leitor, o inconsciente é estruturado como uma linguagem; eis o que ensina, estiliforme, o Jacques Lacan. Pois, de acordo com Rimbaud, o Eu é um Outro acima de tudo: a expressão do inconsciente é, sobremaneira, a expressão e unção do sobrenatural. Pois pensar, aqui, é exprimir e espremer – e atingir, e tanger, o Intelecto e a Forma. O fenómeno, portanto, é filodoxia; a Ideia, no «Fedro», a Filosofia. Quanto mais notórios forem os progressos da Física, mais premente, e providente, é a necessidade Metafísica – assim o disse, pra sempre, o chamado Schopenhauer. E assoalha, no carme, o Sujeito cognoscente, o seu puro e vidente, o clarividente olho do mundo: «Lembrais-vos dos contos que vos eram / Destruídos de noite, numa enorme nave / Do inominável? Lembrais-vos daqueles / Segundos de sangue esquizofrénico e / Tardio na eternidade?»

 

Eu remembro, e eu relembro. Eu rememoro, um Poeta, que sentia a «Dejection», que ejectava, alfim, até às Galáxias.. Em Botto Semedo eu assisto, no «Dasein», ao desenredar, e desenrolar, da Substância e da estância, e eis, aqui, as máscaras do Ser, o eis-aí do Ser. Pois eu «Via como o leite de Deus envernizava / O luto do meu amor, o seu destino / Rasgado e em puro êxtase por abismos / Encenados pelo sangue infinito de / Uma santidade vazia.» A santidade é pois vazia, os monarcas são de soro e o sangue é esquizofrénico: se o prensar é dar à estampa, o pensar é pôr um penso na ferida narcísica. E se o sangue dos mártires é semente de Cristãos, a Poesia é como a purga, a Poesia é qual a forma de evacuação. Vem agora, à colação, a Catarse aristotélica, a desinfecção moral do Pierre Janet. Ou melhor: o livre é pois o livro; se a memória é das origens, a Saudade é do futuro, e a infância é pois segredo ainda por cifrar. Jamais olvidaremos, aqui, o automatismo psicológico, a (es)tese, e o estudo, do Parisino Psiquiatra. Mas não nos iludamos, Amigo ledor: quem criou a noção de escrita automática foi William James, o Escritor, o Filósofo e o letrado norte-americano – e divisamos, alfim, o paradísico, o nado, e os Campos Elísios; pois o Logos, aqui, é psicoterápico, a escrita é qual a forma da Logoterapia – e o psicodrama é glosar, e a Psicanálise é deveras a «cura pela fala».

 

E ao relermos as endechas de Botto Semedo, remembramos, também, os artifícios e ofícios de Fernando Henrique de Passos, o Arquitecto e artilheiro de Fernando Guilherme Azevedo. É que em todos estes Vates, a vida imita a Arte, e não e nanja o inverso. E pensamos, alfim: Botto Semedo não é louco, mas sente-se alheio à polícia- «politeia». É estrangeiro, e o estranho, nas Ideias fictícias; vive mundos, e as vidas, que são as mundícias. Que é o escol, e a escola, da civilidade; e são os lemas, e temas, da sábia Saudade. E diria o João Belo, por isso clama o estro, e é Português, a isso se chama o nascer «Outra Vez».

 

Armação de Pêra, 27/05/2009

 PAULO JORGE BRITO E ABREU

 

SANGUE EM FLOR
Fernando Botto Semedo
Lisboa, Apenas Livros Lda., 2009

Fernando Botto Semedo no TriploV