Tomás António Gonzaga
Marília de Dirceu
Parte 2
Lira XVII

Dirceu te deixa, ó Bela,
De padecer cansado;
Frio suor já banha
Seu rosto descorado;
O sangue já não gira pela veia,
Seus pulsos já não batem,
E a clara luz dos olhos se baceia:
A lágrima sentida já lhe corre;
Já pára a convulsão, suspira, e morre.

Seu espírito chega
Onde se pune o erro:
Grossos portões de ferro.
Aos severos Juízes se apresenta,
E com sentidas vozes
Toda a sua tragédia representa;
Enche-se de ternura, e novo espanto
O mesmo inexorável Radamanto.

Abre um pasmado a boca,
E a pedra não despede;
Outro já não se lembra
Da fome, e mais da sede;
Descansa o curvo bico, e a garra impia
Negro abutre esfaimado;
Nem na roca medonha a Parca fia.
Até as mesmas Fúrias inclementes
Deixam cair das unhas as serpentes.

Já votam os Juízes;
E o Rei Plutão lhe ordena
Deixe o sítio, em que moram
Almas dignas de pena.
Já sai do escuro Reino, e da memória
Lhe passa tudo quanto
Ou pode dar-lhe mágoa, ou dar-lhe glória
Só, bem que o gosto as turvas águas tome,
Inda, Marília, inda diz teu nome.

Entra já nos Elísios,
Campinas venturosas,
Que mansos rios cortam,
Que cobrem sempre as rosas.
Escuta o canto das sonoras aves,
E bebe as águas puras,
Que o mel, e do que o leite mais suaves,
"Aqui, diz ele, espero a minha Bela;
"Aqui contente viverei com ela."

"Aqui..." Porém aonde
Me leva a dor ativa?
É ilusão desta alma;
Jove inda quer que eu viva.
Eu devo sim gozar teus doces laços;
E em paga de meus males,
Devo morrer, Marília, nos teus braços.
Então eu passarei ao Reino amigo,
E tu irás depois lá ter comigo.