RAIMUNDO GADELHA......

Vínculos e dilacerações de um espaço-tempo

No espaço onde, há muito, minha casa foi erguida

ergue-se agora, sem cor e sem forma, um grande vazio

A terraplanagem, impiedosa, fez de tudo estéril solo

 

Hoje, com passos imprecisos, passo à sua frente

sentindo que é preciso, ao menos, preservar a memória...

Ali, bem no centro, havia uma grande árvore pendente

Seu tronco rangia – lenta agonia – ao sabor do vento

Nos dias de tempestade seus galhos agitavam-se

como os braços de quem se afoga em escuro mar

Folhas e flores dependentes e indefesas caíam

e misturando-se a papéis com velhos escritos

bitucas de cigarros, fezes dos pombos, escarros...

Tudo unificado pela chuva e conduzido ao mesmo esgoto,

como se todas as diferenças merecessem compreensão

 

Também vivos na memória, enferrujados arquivos,

guardando, em impune silêncio, inúteis segredos

Documentos desbotados, cartas de amor devolvidas,

diários, retratos, eternos e inacabados poemas...

Passado, pouco a pouco, degustado pelas traças

 

Ainda mais nítida minha própria imagem,

sob a árvore com o tronco em iminente queda,

tentando escrever um novo poema (suicida inspiração?)

Eu, homo erectus - guarnecido com ternura,

por aquela pendente e agonizante forma de vida -

solto o pensamento e, quadro a quadro,

vejo tudo aquilo que concretamente não mais existe

 

Sob o sol, o solo que solenemente abrigou minha casa,

é espaço desterrado, o palco onde, violentamente,

vejo-me despojado de tudo o que me era familiar

O portão de ferro, agora parte dos escombros,

remete-me a um trem na estação da infância...

Longínquo sertão, agudo apito a povoar meus sonhos...

 

A Casa Grande, na fazenda dos meus avós,

tinha noites bordadas pelo canto de cigarras e grilos,

pelo coaxar dos sapos e os uivos de cães errantes...

Mas também o deslumbramento das histórias de trancoso

e o espanto, na hora de dormir, das lendas de botijas,

almas acorrentadas e vaqueiros cavalgando mulas-sem-cabeça ...

 

Nas paredes, antigas e desgastadas molduras

acolhem retratos amarelados de pessoas que nunca vi

Estandes guardam livros cheios de digitais de fantasmas

que, em vão, aguardam um contato qualquer

Exalam cheiros que se confundem com o pó – vida em repouso

Pó que o vento não hesita em suspender e fazer bailar

Partículas em enigmática suspensão,

dispersando-se e integrando-se a outras formas

 

De novo, a visão do espaço onde  minha casa flutua em lembranças

Duro contraste com pedaços de concreto e  ferro retorcido

Os tijolos quebrados arrancam de mim mais uma imagem da infância:

farelos bolacha de água e sal no fundo do pote de vidro

A prateleira, ao lado do fogão, sempre fora do meu alcance...

 

Porém, o que dói mesmo é a certeza de que, ao contrário da outra,

essa que foi minha casa recente, não sucumbiu, naturalmente ao tempo

Foi, sem perda de tempo, friamente assassinada

Estampido único não houve, foi morte morrida aos poucos...

Nem sei se houve tempo para um último pedido

 

E tudo o que nela foi sentido, tudo o que nela –

com unhas arranhando as paredes – foi escrito,

onde, onde simplesmente se escondeu?

Sobram dúvidas, memória sem nítidos contornos...

A árvore pendente caiu no fosso do tempo

Luz, florescência,  ampulheta, breu!

E eu, que assinei o contrato de compra e venda,

sou o verdadeiro assassino daquilo que um dia foi meu!

São Paulo, 6 de janeiro de 2012

Raimundo Gadelha é formado em Publicidade e em Jornalismo pela Universidade Federal do Pará, com especialização na Universidade de Sophia, em Tóquio, Japão, onde viveu durante três anos, depois de ter estudado em Nova York. Poeta e fotógrafo, sua obra percorre o romance e a poesia, geralmente associada à Fotografia. Trabalhou durante três anos como editor da Aliança Cultural Brasil-Japão e, em 1994, fundou a Escrituras Editora. É autor de diversos livros, entre eles: Tereza, perdida, Tereza (contos, 1978), Colagem Trágica (poemas, 1980), Este circo tem futuro (Teatro, 1982) e Cristal (CD de Música Popular Brasileira, gravado em parceria com Cláudio Vespar, 1984), Um estreito chamado horizonte (1992), que o transformou no primeiro brasileiro a escrever em Tanka, a forma poética mais tradicional do Japão, Em algum lugar dentro de você mesmo (poesia, 1994, português-japonês), Brasil Retratos Poéticos 1 (fotografia/poesia, 1996, 7a edição), Para não esqueceres dos seres que somos (poesia, 1998, CD com participações especiais de Chico César, Marisa Orth, Celso Viáfora e Ná Ozzetti), Brasil Retratos Poéticos 2 (fotografia/poesia, 2001, 3a edição), Histórias do olhar (contos, 2003, com outros autores), Brasil Retratos Poéticos 3 (fotografia/poesia, 2003, 2a edição), Brasil Natureza e Poesia (fotografia/poesia, 2004), Vida útil do tempo (poesia, 2004), Brasil - Livro e Postais (fotografia, 2005) e Em algum lugar do horizonte (romance, 2000), publicado em 2007 na Grécia e no México. Em 2007, Raimundo Gadelha assumiu o controle acionário e administrativo da Arte Paubrasil (www.artepaubrasil.com.br), uma das mais reconhecidas livrarias virtuais do País.