No espaço onde, há muito, minha casa foi erguida
ergue-se agora, sem cor e sem forma, um grande
vazio
A terraplanagem, impiedosa, fez de tudo estéril
solo
Hoje, com passos imprecisos, passo à sua frente
sentindo que é preciso, ao menos, preservar a
memória...
Ali, bem no centro, havia uma grande árvore
pendente
Seu tronco rangia – lenta agonia – ao sabor do
vento
Nos dias de tempestade seus galhos agitavam-se
como os braços de quem se afoga em escuro mar
Folhas e flores dependentes e indefesas caíam
e misturando-se a papéis com velhos escritos
bitucas de cigarros, fezes dos pombos,
escarros...
Tudo unificado pela chuva e conduzido ao mesmo
esgoto,
como se todas as diferenças merecessem
compreensão
Também vivos na memória, enferrujados arquivos,
guardando, em impune silêncio, inúteis segredos
Documentos desbotados, cartas de amor devolvidas,
diários, retratos, eternos e inacabados poemas...
Passado, pouco a pouco, degustado pelas traças
Ainda mais nítida minha própria imagem,
sob a árvore com o tronco em iminente queda,
tentando escrever um novo poema (suicida
inspiração?)
Eu, homo erectus - guarnecido com ternura,
por aquela pendente e agonizante forma de vida -
solto o pensamento e, quadro a quadro,
vejo tudo aquilo que concretamente não mais
existe
Sob o sol, o solo que solenemente abrigou minha
casa,
é espaço desterrado, o palco onde, violentamente,
vejo-me despojado de tudo o que me era familiar
O portão de ferro, agora parte dos escombros,
remete-me a um trem na estação da infância...
Longínquo sertão, agudo apito a povoar meus
sonhos...
A Casa Grande, na fazenda dos meus avós,
tinha noites bordadas pelo canto de cigarras e
grilos,
pelo coaxar dos sapos e os uivos de cães
errantes...
Mas também o deslumbramento das histórias de
trancoso
e o espanto, na hora de dormir, das lendas de
botijas,
almas acorrentadas e vaqueiros cavalgando
mulas-sem-cabeça ...
Nas paredes, antigas e desgastadas molduras
acolhem retratos amarelados de pessoas que nunca
vi
Estandes guardam livros cheios de digitais de
fantasmas
que, em vão, aguardam um contato qualquer
Exalam cheiros que se confundem com o pó – vida
em repouso
Pó que o vento não hesita em suspender e fazer
bailar
Partículas em enigmática suspensão,
dispersando-se e integrando-se a outras formas
De novo, a visão do espaço onde minha casa
flutua em lembranças
Duro contraste com pedaços de concreto e ferro
retorcido
Os tijolos quebrados arrancam de mim mais uma
imagem da infância:
farelos bolacha de água e sal no fundo do pote de
vidro
A prateleira, ao lado do fogão, sempre fora do
meu alcance...
Porém, o que dói mesmo é a certeza de que, ao
contrário da outra,
essa que foi minha casa recente, não sucumbiu,
naturalmente ao tempo
Foi, sem perda de tempo, friamente assassinada
Estampido único não houve, foi morte morrida aos
poucos...
Nem sei se houve tempo para um último pedido
E tudo o que nela foi sentido, tudo o que nela –
com unhas arranhando as paredes – foi escrito,
onde, onde simplesmente se escondeu?
Sobram dúvidas, memória sem nítidos contornos...
A árvore pendente caiu no fosso do tempo
Luz, florescência, ampulheta, breu!
E eu, que assinei o contrato de compra e venda,
sou o verdadeiro assassino daquilo que um dia foi
meu!