Por entre o olor do café e o tilintar das colheres contra as chávenas, por entre os espelhos rutilantes, por ente a vertigem das gaivotas, tenho fome, e escrevo.
Escrevo nas margens de um jornal. Escrevo vocábulos incertos, que a minha caneta vai pescando com as suas tesouras de caranguejo, sonâmbula, ao acaso.
E as pessoas entram e saem. Entram e saem como moscas que lêem almanaques microscópicos, entram e saem como o galope da água por entre muros de infinito, entram e saem como os sinos da torre de Saint Jacques de La boucherie.
É isso... é a hora da bica.
Liberto entre as plumas do sonho, liberto entre as plumas do real quotidiano, acompanhado, mas só, mas contente, mas liberto... escrevo.
Escrevo, enquanto admiro as curvas desta bela mulher que mesmo agora acaba de entrar, esguia como um cavalo, esguia como o ribeiro da minha terra, esguia como o fogo da carne. Escrevo.
E o empregado do café, velho cúmplice de viagens suburbanas, aproxima-se com dois panados e um fino nas mãos, aproxima-se com as faces suadas do calor alantejano que hoje deu a volta a Portugal e subiu mesmo até ao cocoruto da Serra da Estrela e depois de ter lavrado o pinhal de Leiria recolheu-se para descansar.
E no olhar do empregado de café, olhar profundo como os Invernos alemães, há uma estrela que me lembra Octavio Paz, uma estrela como aquela que há dois mil anos apareceu lá para os lados do Oriente.
Sim, Octavio Paz, o grande Octavio Paz! Poeta que li e reli durante toda a minha juventude até que os olhos me ardessem, até que os pulsos me fumegassem. Poeta das fontes voadoras, das noites dos olhos de água, dos choupos de água e cristal, das pirâmides azetecas, de Quetzalcóatl e Tonantzín, alquímico como as grandes colunas pré-colombianas, alquímico como a Torre Eiffel, alquímico e sussurante como um xamane:
La mirada interior se despliega y un mundo de vértigo y
llama nace bajo la frente del que sueña
E enquanto vou mastigando os panados e enquanto vou bebendo o meu fino, e enquanto vou inspirando o dilúvio destas palavras.... dilúvio desenfreado... desenfreado, escrevo.
Escrevo porque a testa me arde como uma cratera molhada, escrevo porque uma árvore miraculosa irrompe dentro do meu peito, escrevo porque uma fonte seminal me pulsa na garganta.
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