A mim, que inventei histórias e lendas de fantasmas
no tempo em que fui vendedor
de armas na Abissínia,
em que as minha pernas ainda tinham a força de um vulcão,
A mim, que fiz da poesia carne, que fiz de cada palavra
um relâmpago de sangue,
A mim, que fui abandonado pelos remadores,
que, sozinho no barco bêbado, singrei por entre
universos impassíveis, que perdi a chave do antigo palácio
onde guardávamos as jóias
dos nossos antepassados...
A mim, que pintei modelos na tela do luar, no colo das montanhas,
nas asas das borboletas
igníferas, corpos exemplares no granito das minha visões...
A mim, desregrado de todos os sentidos, na crista do dilúvio
de olhos pretos e crina amarela,
entre o limite das fonteiras carnais, entre arame farpado
e um paraíso de sonhos possíveis...
A mim... Dizei-me, que badaladas serão estas?
Sinos de bronze na tarde plácida de Alberto
Caeiro? ou pesadas correntes dentro dos aposentos de Nerval?
Já não sei se sou eu quem fala
ou se será a voz de um dos meus filhos, filhos dos áridos
desertos; já não sei se sou eu quem respira sofregamente
ou se será a garganta do meu bisavô,
que sofria de bronquite asmática, no seu leito de morte.
O mar espraia-se, teologicamente, até à soleira da minha porta,
e sem que eu me aperceba entra todo,
todo, de uma só vez, pela fechadura...
Peixes dourados e búzios nunca antes vistos saltam
em volta do meu leito...
Vejo-me ou imagino-me na tela de mim mesmo? Mergulhado
na rebentação das ondas,
sem uma perna, os olhos vidrados, vitrais de catedrais,
perpetuados para seram clarões e cometas
no meio da noite do nada, no grito do grande silêncio.
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