Jeremias, judeu, velho amigo do café da esquina, onde
jogávamos à batota até às tantas da noite, acordou-me
ainda não eram dez da manhã.
Estremunhado, abri a janela e gritei:
"Quem se atreve a acordar-me a esta hora?! "
Ao longe, viam-se as gaivotas penduradas nos penhascos.
Um azul dórico caía a pique. Era um verdadeiro pára-quedas.
Lembrei-me de Homero. Uns dizem que era cego.
Outros, por sua vez, afirmam que existiram dois Homeros:
um da Íliada e outro da Odisseia.
Seja como for Homero será sempre um mistério.
Homero é Homero, nada mais.
Jeremias subiu a escada rolante. Trazia colado ao sobretudo
o trânsito matinal: carros, bicicletas, autocarros e por aí adiante.
Já se ouviam as sardinheiras do tempo da minha infância:
"Olha a sardinha! Fresca, linda, bonitinha! Tão fresquinha!
Vinde, vinde, comprai!"
E pela escada acima singraram as caravelas do Gama. E Camões
nadava a Oriente com o primeiro manuscrito dos Lusíadas
na mão. Dizem as más bocas que teve de escrever uma segunda
versão. Outros, ainda, dizem que mais tarde foram falsificados.
Jorge de Sena nega tudo isto:
NÃO E NÃO E NÃO E NÃO E NÃO!
Ele era Especialista nestas andanças.
Jeremias entrou no quarto e com uma voz de pisca-pisca volante.
Disse:
"Mestre ! Mestre! Trago-vos uma péssima notícia: Carolina, a vossa
querida Carolina, morreu".
Ah! Carolina, minha filha, tão amada por todos!
Tão jovem! Tão bela!
Os teu olhos grandes, tão azuis! Iluminavam as ruelas da
Idade Média. Eram holofotes nas naves do nada. E as tuas faces um
pouco sardentas, rosadas... Carolina...
Porquê, meu Deus?! Porquê?! Porque não me levaste antes a mim, que
Já sou tão velho?
Jeremias disse:
"Mestre, a vida é mesmo assim. Morrem cedo os que os deuses
amam. Pelas minhas barbas... a filosofia ainda me corre nas veias!
Descartes, Hegel, Schopenhauer, Heidegger", Nietzsche:
"Houve um temppo em que o sacrilégio era o maior dos crimes,
mas Deus morreu e com ele esses criminosos!" (1)
Mas será que é assim? Ao fim ao cabo não somos nada. Vivemos
nos labirintos de nós mesmos. Dentro ou fora da cidade?
Jeremias, Jeremias, gritei irado, deixa-te de filosofias baratas.
Traz-me o meu fraque domingueiro. Traz-me o cálix da cicuta.
"Ah! Abril é o mais cruel dos meses, gerando
Lilases na terra morta, misturando
A memória e o desejo, atiçando
Raízes inertes com a chuva da primavera." ( 2 )
Ah! Quero sentir o delírio do veneno nas minhas entranhas!
Quero gritar até que a terra estremeça!
Tu conheces o meu nome. Tu sabes quem sou:
"Je suis le ténébreux, - le veuf, - l'inconsolé,
Le prince d'Aquitaine à la tour abolie:
Ma seule étoile est morte, - et mon luth constellé
Porte le soleil noir de la Mélancolie." ( 3)
Jeremias abriu a porta e saiu. Chovia a cântaros, um relâmpago
Iluminava a torre dos clérigos. Na livraria Marques & Marques os livros
Abriam-se e fechavam-se, abriam-se e fechavam-se, ininterruptamente.
"É assim a vida, é assim a vida", disse Jeremias
para com os seus botões.
E qual uma réplica de F. P., desfez-se no vento.
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