ERA uma noite de inverno. lá fora, os ventos
tinham abandonado o
bosque. altivos, percorriam as ruas da aldeia
subiam às árvores e às torres, chicoteavam as casas.
eram ventos setentrionais
furiosos como mosquitos nas húmidas
herdades do verão.
dentro da casa, estava o homem. e sonhava.
sonhava que estava morto.
à sua volta: fezes, ratos, moscas varejeiras.
na penumbra, alguém chorava.
mas não estava ele morto?
o que pode fazer um choro contra a morte?
via o tempo da sua infância,
uma colagem ou uma película fragmentada,
e o pároco que lhe dizia: a morte não é o fim.
a morte é o começo de Deus.
esperança, meu filho. esperança.
mas agora que sonhava que morrera, não havia
nada para além da morte
nem sequer a sombra de um deus
ou o ranger de uma dobradiça.
só a escuridão!
como quem, de repente, tivesse apagado uma luz
só escuridão!
sonhava estar morto, mas ao mesmo
tempo estava vivo. como Lázaro?
será possível, será possível
contemplarmos a nossa própria morte?
caminharmos por dentro dos espelhos?
sonharmos que estamos mortos, mortos?
por um momento
soletrarmos o alfabeto da eternidade?
a morte não é o fim
a morte não é o fim
murmurava a voz que vinha da infância.
e de repente, acordou, como alguém
que de repente se ergue das águas revoltas
sufocante e fremente
a boca seca como papel
e tateia na escuridão à procura de um nome.
não! não estava morto!
a Hora ainda não tinha chegado.
lá fora: os ventos haviam regressado aos
bosques, aos seus ninhos ancestrais
a madrugada erguia-se como uma rodilha
e um silêncio sufocante abafava a terra
como quando os abutres passeiam
pelos campos de batalha
e recolhem as almas dos guerreiros mortos.
Luís Costa, janeiro 2016
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