1
ESTOU sentado no café. bebo um chá de limão
para aclarar os pensamentos. pois passei a noite dentro de
um sonho obscuro. sem portas. nem janelas. sem sol nem luar.
bebo o meu chá, vagarosamente, como se pudesse parar o tempo
no simples gesto de beber. bebo e olho através da janela do
café. bebo e olho e vejo vistamente um homem, um homem
sentado a uma esquina.
não tem braços, nem pernas: o mar estendido à sua volta como
um cão magro. o mar, sujo, mas fiel. o rosto barbudo, nobre
e altivo como a tristeza. e ouço como o homem canta, ouço
como canta uma canção muito antiga, numa língua muito
antiga.
uma canção de miséria e terror. e fala dos seus membros
perdidos. algures perdidos. fala. das dores que ainda lhe
provocam dores, das feridas que chegam da carne à alma, da
casa que já não pode habitar.
e também das crianças que deambulam, cegas, pelas ruas do
amanhecer em busca da turbina da luz. dos animais degolados.
dos avós olvidados na solidão das portas. e das mães que
choram os seu filhos e esperam pacientemente por notícias de
Deus.
com os olhos cegos, revirados para o vazio, canta e canta e o
sal sobe-lhe aos ventrículos. sobe. arrebata-lhe a voz. e eu:
olho-o. olho-o. entristecido, mas maravilhado. olho-o. e
lembro-me de homero com o seu búzio miraculoso numa das
mãos.
2
SONHOU que deus era uma ferida. aberta.
uma ferida. fresca e aberta. nas vísceras do animal.
e um murmúrio libertava-se. ao fundo. nas trevas. um
murmúrio. inacessivel. talvez. pássaro ou fumo. ouro.
talvez. talvez um nome. um flash. como uma cavilha
enferrujada. entre o cântico do martelo e a suavidade da
carne. * ABRIU os olhos e
escreveu: deus talvez seja a fechadura de uma chave que
nunca chegou a existir.
Luís COSTA
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Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.
Depois de passar três anos num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo. Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.
Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado. |