LUÍS COSTA:::::::::::::

Viagem

sábado. os bosques. caminhamos lado a lado / estranhos / pois no cérebro ardem meteoros de enigmas, imagens, metáforas ainda não inventadas...  a criança velha , mutilada, que sangra...

    caminhamos. cruzamos as encruzilhadas com antigas charruas às costas. rebanhos distantes na solidão dos pastos que imaginamos no infinito desejo de sermos o que não somos    mas algum dia o seremos? Wann aber sind wir? *mas o que é ser? um rosto de criança? um olhar tão azul como a madrugada? uma dança? uma boca desdentada ? um rosto enrugado?

    entramos em casa, olhamo-nos  ao espelho , atentamente  – que vimos? uma máscara, e por detrás dessa , outra e outra e ainda mais outra   persona ad infinitum. 

   a máscara maldita, a máscara do tempo que nos corrói , ávida de vazio / o vazio que ficará quando descermos à terra / alimento dos vermes / talvez o grande alimento / a sagrada tocha na caverna de Platão. / 

    talvez possamos agora estudar a essência da luz dentro da barriga dos vermes, talvez o sol nos ilumine por dentro como se fôssemos lâmpadas fosforescentes, ou pirilampos numa noite de verão que se ergue das pedras e ilumina as aldeias porque as cidades já não precisam de iluminação. / ali, a iluminação gera-se nas  cloacas inferiores e projecta-se contra o firmamento de tal modo que os astros se apagam em sua arcaica exterioridade.

    vagueamos pelas periferias, pelos becos, pelas estacões de velhos metropolitanos, pelas tabernas ambulantes, pelas ruas, pelas centrais eléctricas de múltiplos mundos que, embora tão afastados, se cruzam porque atravessam os oceanos e os continentes através dos cabos da internet...

    hoje estamos todos próximos / tão próximos / dentro da memória de um computador / tão próximos / com o fogo do coração firmado na ponta dos dedos / a voz do teclado no facebook / no chatroom / no corpo do email... é como se estivéssemos dentro dos cabos / é como se fôssemos teletransportados e víssemos a alma dos outros brilhando por detrás dos vitrais da distância    tão transparentes, tão negras, tão reais...

    ah! somos todos irmãos / somos todos irmãos, tão irmãos, tão próximos e tão distantes nesta real virtualidade que inventamos e nos inventa, mas que só o corpo a certas horas pode tocar, quando a alma se petrifica e  torna carne e o mundo adormece sobre as estacas do desejo ...  enquanto uma chuva benigna lava as ruas...  as ruas... no sonho.  talvez.

 

 * Rilke

 

 
 
Sofia Ribeiro, «Paradoxo»
 
 

Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de  Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.

Depois de passar três anos  num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo.  Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.

Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.