Uma água nocturna
ou um murmúrio contundente
um martelar amarelado nos sonhos,
uma hiena de olhos vermelhos, uma sinfonia, uma bigorna em fogo vivo
um frémito voltaico
nas ventosas de pequenos pés entre cinzas,
e passos por sobre muros
passos de um mar entre muros,
nos muros do silêncio
muros que dividem o rosto icónico em várias perspectivas
nas naves do Gama
como em Picasso um tigre de símbolos do tamanho do mundo
e estas ventas estrebuchantes
onde crescem limos barrentos
e animais
animais edipianos que se afundam na sua própria destruição,
mas ainda assim um mergulho na vida
mas ainda assim um rosto ou um grito
um rosto ou uma possível madrugada linguística
um rosto que se quer realidade
Por entre janelas quebradas
busco a vida,
A vida ou um voo de pássaro pleno
A vida ou um fusível na coluna vertebral do céu
A vida ou a clemência dos deuses entre vidros
uma âncora ou um pasmo
um pulso violento capaz de vibrar no plexo interior das coisas
um choque de capilares incontidos
envidraçado momento no relâmpago do Olímpico
Pois que outra coisa se deve esperar senão um relâmpago ou uma faísca?
Pois que movimento é este senão uma corda bamba
um vento incerto,
um ser-se outro,
sempre outro,
uma fragilidade abismal
um plâncton boiando no estrondo da lâmina nos olhos
uma fragilidade que tudo corta
que tudo aniquila e pouco deixa
a não ser
a sílaba quebrada nos lábios redondos,
ou a fotossíntese da queda
nas asas de Dédalo
Pois busco a palavra
o verbo justo e exacto porque imperfeito,
a imperfeita perfeição filha da pedra
uma ilha onde um fino corpo de mulher egípcia se quer fazer
onde um rosto e uns olhos crescem
onde olores e suores e perfumes pegajosos de carne se erguem no ar
bandeiras ou estandartes de um gesto que ainda não é,
Mas algum dia o virá a ser?
Algum dia teremos palavras bastantes
para que da água se faça vinho?
Para que a palavra
renasça inscrita no centro do todo,
na ideia que nos faz ?
Será que o peito conseguiria aguentar uma tal violência,
o vigor de uma sabedoria tal
que de tão real
abrisse buracos na aorta
esvaziando todos os lagos e arestas e contornos nos ossos?
Pois percorro as ruas e vejo as caras dos homens
um mundo em cada rosto
rostos vermelhos de pulsões
rostos taciturnos
rostos como os dos índios quando enterram o cachimbo da paz
como uma cicatriz profunda nos ombros
rostos de olhos tristes contemplando o vazio do infinito
ou uma erosão na película do peito
um ferro em brasa
uma noite dentro do dia
porque cada homem é um mundo,
porque em cada homem há um mundo,
porque cada homem é uma ciência de símbolos
um abismo de questões
um abismo que anjos e demónios dividem entre si
e as perguntas são moscas sobre cadáveres
num quarto abandonado ao silêncio dos astros
num quarto
sem deuses ou curandeiros
e as perguntas repetem-se
as perguntas
ecos na mudez dos astros que nos olham impassíveis
perguntas ou pregos enferrujados no horizonte
perguntas que jamais poderão ser removidas de entre a pele e a pele
porque são um golpe de machado na testa
um corte profundo e astuto na medula espinal
Por isso que mais nos resta
senão cinzelarmos o alfabeto do momento
no momento,
no clarão de cada instante
libertarmos a faísca na ponta dos dedos
e enterrarmos as unhas na ferida do lado esquerdo
até que a lava corra
lava fresca de uma arqueologia selvagem,
ou tinta
no galope sísmico de uma cambota,
trote boreal,
joelho aos pedaços percorrendo a meia-noite
como quando uma super-nova se liberta das armaduras crepusculares
como quando um duelo arrebata o universo dentro das veias
um duelo ou uma tempestade
um duelo ou uma âncora
uma higiene espiritual
um tremor
um duelo
um relâmpago
uma devastação
uns dentes famintos de carne
onde nasça e morra todo o amor
L.C. Züschen 4 de Junho MMIX |