LUÍS COSTA::::::::::::

VARIAÇÕES SOBRE A POESIA IX

VI NÓTULAS

Por fim, emudecido, o poeta morre
Para renascer como poema
 

Ko Un

1

A poesia deve ser acto e nunca função, porque ao ser função o poeta afasta-se da essência da verdadeira poesia, ou diria, trai-a, tentando usá-la ou dominá-la como um instrumento técnico, ou ideológico, a seu belo prazer. Ora a meu ver não há coisa mais falsa do que isso. Para essas incursões temos a prosa.

Como Jorge de Sena afirma:

[... ] é possível dizer tudo em linguagem poética, sem dizer o que , pelo carácter simbólico e conciso desta linguagem, não pode ser dito sem mau gosto e sem ridículo, como sucedeu ao D.H. Lawrence, quando quis misturar “ poesia “ e “ prosa “ para dizer tudo. O tudo, expressamente dito, é, e tem de ser cada vez mais, o apanágio da ficção. É preciso que se liquide de uma vez a ilusão de que a ficção pertence à poesia como tal: só pertence à poesia genericamente considerada como criação e construção de estilo. A poesia como criação de linguagem é supra-real, isto é, engloba a realidade e a sua representação linguística. *

A poesia será deste modo a forma de linguagem mais próxima da fonte visceral, ou seja, do Ser. Esta linguagem cria o seu próprio código. E embora usando-se da linguagem do dia-a-dia, e das capacidades técnicas do poeta, a poesia diz sempre outra coisa, diz sempre mais, fala-nos dentro do tempo e para lá do tempo. O poeta deve ser o humilde servidor da poesia e nunca o seu usurpador. Nem mais nem menos. 

2 

Há uns tempos atrás li (se não estou em erro foi no blogue do poeta João Rasteiro) uma frase muito interessante do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto. Passo a citar:

"A poesia não é nenhum instrumento, nenhuma propaganda. A poesia nada resolve. A poesia não é uma coisa útil. A poesia é um mistério amável."

Esta é uma frase, deveras, repleta de sabedoria, própria dos grandes poetas. Os poetas grandes e conceituados, em geral, têm razão. No entanto, embora concordando com a primeira parte da frase de João Cabral de Melo Neto, já não concordo tanto com a segunda. Sobretudo com o último segmento. Dizer que a poesia é um “ mistério amável “, é a meu ver pouco, muito pouco, diria mesmo é empobrecê-la. A poesia sendo mistério é também perturbante e por isso quanto a mim, revolucionária a nível espiritual. E que coisa mais provocante e violenta pode haver, num mundo todo virado para o lucro e o hedonismo desmedido como o nosso, do que o simples acto de poetar? Do que sentir o fogo das palavras de um poema de Herberto Helder, ou a lacónica clareza de um Kaváfis, ou o caos de um Mário de Sá-Carneiro, ou a palavra lancinante de um Luís Miguel Nava etc. sem qualquer outro interesse prático ou lucrativo do que não seja dar voz ao Ser?

Perguntarão os homens do dia-a-dia: afinal que fim tem a poesia, que sentido prático ou lucrativo? Por quê ou para quê afinal escrever poesia? Mas poderão eles algum dia compreender isso? Eles vêem na poesia um simples jogo, uma espécie de passatempo para crianças, um negócio absurdo. A poesia, de facto, nada resolve. Mas não é isto uma forma de provocação, por parte da poesia, não é isto, uma forma de revolta e acusação contra o mundo do pragmatismo materialista? A poesia menospreza simplesmente esse mundo, por meio da sua linguagem, outra, ela é um acto revolucionário. Isto porque como bem diz Saint- Jonh Perse no último parágrafo do seu discurso de Estocolmo:

Au poète indivis d'attester parmi nous la double vocation de l'homme. Et c'est hausser devant l'esprit un miroir plus sensible à ses chances spirituelles. C'est évoquer dans le siècle même une condition humaine plus digne de l'homme originel. C'est associer enfin plus largement l'âme collective à la circulation de l'énergie spirituelle dans le monde ... Face à l'énergie nucléaire, la lampe d'argile du poète suffira-t-elle à son propos? Oui, si d'argile se souvient l'homme. Et c'est assez, pour le poète, d'être la mauvaise conscience de son temps.

A poesia aponta o dedo... A poesia pretende reintegrar o homem no mundo e no cosmos, pretende reanimar um humanismo visceral, lembrar a argila do l'homme originel, ameaçado pelo capitalismo e pelos progressos da técnica moderna que se insurgem contra o Ser, por isso contra ele mesmo, e que são verdadeiros perigos para o espírito. A poesia é uma revolta que se opera ao nível espiritual. E não é isto, uma forma, outra, de se ser útil? O Homem do dia-a-dia desconfia disto, o homem do dia-a-dia desconfia do poeta, ele olha a poesia de lado... Pois a poesia jamais poderá ser usada em nome de ideologias ou politiquices, embora também já se tenha tentado isso. Talvez a poesia seja mais perigosa do que pensamos, dirá o homem do dia-a-dia, piscando os olhos, de lado. Talvez a poesia seja o último reduto onde o homem ainda é homem, diremos nós, pois é nela que o homem testemunha aquilo que é, que se vê e revê no espelho da água límpida, pois é nela que ele se expõe a nu, sem máscaras, morais, ou hipocrisias. No universo poético tudo tem o direito de ser: o homem, a terra e os animais encontram-se ao mesmo nível, olhos nos olhos, filhos do grande princípio universal que tudo arrasta com a sua poderosa e violenta corrente. O homem não é senhor de qualquer verdade. O homem encontra-se, isso sim, como tudo quanto existe (embora distinguindo-se dos outros seres pela sua capacidade linguística e pensante), no interior da verdade universal. Chegado aqui o homem prático sente-se perdido, desarmado, chegados aqui, o poeta que há dentro do homem acorda-se. O poeta, ainda que viva sozinho, nunca se encontra sozinho, ele encontra-se ligado à essência de todas as coisas, ou seja, ele congrega em si a sabedoria do mundo, ele comunga da sua unidade universal. Agora, entregue à correnteza do uno universal o homem canta, canta a dor e a alegria, a sua nudez, pois que mais lhe resta senão cantar? É neste momento que o cântico se intensifica, que as portas de um outro mundo se nos abrem, as portas da percepção, o outro lado das coisas, sempre aqui e agora presente, mas que no dia-a-dia da sua labuta faminta de poder e êxito o homem tende a esquecer. O homem atravessa as fronteiras de si mesmo, torna-se num deserto, um habitante do império dos ventos.

Sim, a meu ver a poesia não é um “ mistério amável “, desde há muito que ela deixou de ser um acto inocente, um manequim de salão ou um objecto de ostentação para uso próprio ou alheio, ela é, isso sim, um mistério violento e perturbante, por natureza sua revolucionária, que devido à intensidade da sua linguagem, outra, à violação da língua regulamentada, pode fazer estremecer os alicerces e todas as certezas do sonho em que o homem pragmático se apoia.  

E quanto a isto cito Hölderlin: Mas o que fica /É fundado pelos poetas, ou ainda: Mas, dizes tu, os poetas são como o santos padres do Deus do vinho /Que seguem de terra em terra pela noite santa. E cito ainda um verso de Char:  La réalité sans l’énergie disloquente de la poesie, qu’est ce?

A poesia é a útil, porque fonte ou relâmpago da sabedoria visceral, liberdade do espírito.  

3 

O acto poético também é trabalho e sofrimento. Não nos devemos deixar enganar por aqueles que nos pretendem fazer crer que a poesia deve ser simplesmente um acto espontâneo, uma espécie de anarquia espiritual. É claro que ela parte quase sempre do inesperado, de um ímpeto interior ou anterior, indecifrável, duma espécie de flash mágico, mas a realização do poema é mais do que isso, ou seja, é também trabalho: o suor e o sangue que o poeta põe em cada palavra e frase que escolhe.

Eu sempre fui e serei um grande apaixonado do surrealismo. Sempre acreditei e continuarei a acreditar no seu fogo genésico. No entanto nunca acreditei na chamada escritura automática, a longo prazo, ou no escrever inconsciente. Isto porque quem quiser escrever, só assim, dessa maneira, acabará por cair em estereótipos. E isso é o caso de muitos jovens poetas de hoje que escrevem poemas num estilo surrealista e que, embora tendo uma certa qualidade, recorrem sempre a imagens já demasiado usadas, demasiado gastas, onde predomina a falta do inteligente encanto e de toda a surpresa da originalidade.

O poeta deve explorar a capacidade criativa do inconsciente, mas deve também saber usar a capacidade da sua consciência. Pois o homem tanto se gere pelo inconsciente como pelo consciente. Todo aquele que desprezar um desses aspectos está-se a empobrecer a ele próprio, não se conseguindo desenvolver poeticamente. O poeta deve ser um ser em aberto. Ele deve percorrer todos os caminhos que se lhe abrem. Só conhecendo os vários caminhos, ele poderá encontrar o seu próprio. O poeta deve ser um trabalhador nas vinhas da poesia. A sua “ função “ é, sobretudo, a de pastor, pastor do fluído verbal que se pretende tornar forma, ou seja, poema.  

4 

Escrever um poema não é um simples acto de escrever por escrever, ou seja, aquela necessidade íntima de nos despirmos das nossas dores, de cuspirmos e escarrarmos as nossas fúrias e feridas como quem se confessa ao padre da freguesia, ou ao psicólogo, o que no entanto também poderia ser...

Escrever um poema, por mais simples e pequeno que este seja, é antes de mais um acto de coragem, coragem para cantarmos o mundo com a carne e o sangue, para sofrermos e nos alegrarmos, para nos ausentarmos e voltarmos a nós, coragem para incendiarmos o espaço com o fogo que nos habita, o fogo da palavra, o fogo da descida órfica, ainda quando o perigo da derrocada seja grande.

Escrever um poema é também um êxodo dentro de nós, um nada, um dizer não às regalias e aos confortos do ter, um acto revolucionário, um majestoso silêncio, é trazer sempre a tenda e a bagagem às costas como aquele povo que durante 40 anos errou pelo deserto...

Mas escrever um poema é, sobretudo, e para além de tudo, a totalidade dos encontros e desencontros, o testemunho do grande mistério da realidade maior, onde moramos, e que nos faz ser: o SER.  

5 

O  “ Cântico dos Cânticos” é, quanto a  mim, um dos mais belos poemas de amor alguma vez escritos. A bíblia e os Apócrifos são livros que se encontram sempre à mão na minha mesinha de cabeceira (livros repletos de poesia), mas também a “ Epopeia de Gilgamesh “, onde, segundo modernas investigações a bíblia se terá inspirado (por exemplo nos Génesis, o caso do Dilúvio.), e igualmente “Das Totenbuch der Ägypter “ (o livro dos mortos) e outros.

A poesia de um poeta não é só o resultado da sua capacidade criativa inata e experiências vivenciais (conscientes ou inconscientes), mas também de influências que lhe advêm das múltiplas leituras que fez e vai fazendo (sejam estas literárias ou até cientificas). Isto não tem nada a ver com o plágio. Poeta puro não existe. Talvez só o António Aleixo, e ainda neste caso duvido.

A poesia não é uma coisa dada, um corpo preexistente, que se possa simplesmente pescar como quem vai à pesca. Ela é, a meu ver, um fluxo energético que se dá ao mundo através do poeta, no entanto o poeta não pode ficar ali simplesmente adormecido, à sombra da bananeira, espera que a poesia se torne qualquer coisa. Ser-se poeta não é uma mera brincadeira. Ser-se poeta é um dever, ou antes, um ofício, mas um ofíco, livre, isento de qualquer interesse pecuniário.

O dever do poeta, e nisto vejo o poeta como um pastor- trabalhador, uma espécie de técnico, é ser capaz de canalizar o fluxo energético vindo dos seus sonhos, conhecimentos, experiências e influências transformando-o em algo de novo e original. Como éluard diz: “ O que a mão tomou desdenha tomar a forma da mão/ o que foi compreendido já não existe.” Pois o poeta dá uma forma àquela energia, molda-a, ou seja, transfigura-a. Ela é e já não é o que era. Por isso o céu confunde-se com a sua verdade. A verdade que é a energia tornada unidade: forma – espírito.

Só assim o poeta se pode ir tornando poeta. Digo tornando-se poeta, pois ser-se poeta é um processo contínuo, progressivo, ad infinitum, que é quase não ser nada: para lá do poema (durante a sua escrita ou leitura), o poeta, propriamente, não existe. No entanto também é verdade que sem o poeta a poesia nunca chegaria a ver a luz do mundo. 

6 

Não digas que a vida é nada porque a vida é mais que nada, mais que um simples vocábulo,

sagrado ou não, embora, como alguém dizia, talvez o mundo não seja mais que um punhado de metáforas na boca dos poetas. Hölderlin diria : o que fica / é fundado pelos poetas.

Mas se assim é a vida é uma transgressão verbal e o erro vale tanto como a verdade. Talvez o erro seja simplesmente uma verdade passada como diria Kaváfis. Pois quantas verdades não foram no passado proclamadas como verdades das verdades e hoje são erros crassos?

Lá bem no fundo, somos todos transgressores. Trangredir é um acto de tranformaçao, de mundança. Só aqueles que crêem nas ortodoxias confiscadas se consideram não transgressores e por isso mesmo serão os maiores transgressores, pois transgridem contra o movimento natural da vida, querem-na tomar só para si, querem ser seus indisputáveis donos, e donos do que é alheio. Senhores de uma só verdade, déspotas que tornaram uma ideia num princípio absoluto, canonizado, querem paralisar o mundo no seu eixo. Querem obrigar todos os homens a medirem-se pela mesma medida. Uma medida globalizada, com medidas exactas e tudo o mais, ou seja, humana, demasiado humana.

Mas será isso possível? Que diria Heráclito? Será que o mundo poderia existir, sem rebeldes e transgressores, humanamente, tal como é?

Poeticamente ou filosoficamente ou antropologicamente ou historicamente podemos dizer: transgredir é humano (o homem, ele próprio, é em si uma trangressão) mas não demasiado humano. E aqui, neste preciso momento, há um certo sabor a verdade. Mas dentro do movimento que nos impele, que transgride, continuamente, aquilo que chamamos de tempo histórico, dizei-me, senhores: o que é a verdade?

Só a poesia diz a verdade, visto que para ela não existe o problema da verdade, nem o problema da moral, ela só crê no cósmico universal, e dentro do cósmico universal, do círculo do ser - a verdade é também erro e o erro é também verdade, ou seja a “ verdade “ que é unidade. Só depois vem o homem com os seus altivos humores de grande conquistador...

Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de  Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.

Depois de passar três anos  num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo.  Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.

Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.

http://oarcoealira.blogspot.com/