Umberto Eco. Uma fotografia na página
164 da revista Spiegel, Nr. 45, 02.11. 09, mostra-o sentado num enorme
sofá cor de laranja (estilo anos 70) com franjas que quase roçam o chão.
Óculos à intelectual, claro (pois que Eco
não é só um grande romancista, ma sobretudo o papa da semiologia)
gravata azul, casaco cinzento, calça de um esverdeado tropa, sapatos
castanhos, camisa branca, bigode aparado, uma bengala na qual se apoia
com as duas mãos em pose aristocrática e sapiente.
Ao descrevermos a maneira como Eco se
encontra vestido, estamos a fazer uma lista. Fazer listas é fazer
cultura. Fazer listas é definir o mundo, os objectos, as pessoas.
Enumerar é dar nome, dar uma personalidade àquilo que se enumera, uma
identidade. A identidade é uma enumeração, tirar do silêncio as coisas,
dar-lhe uma voz. Pois enumerar é dizer, identificar, catalogar, nomear.
A enumeração das roupas de Umberto Eco mostra-nos o homem à luz da
palavra. Enumerar é neste caso não só dizer o que Eco tem vestido, mas
muito mais. Ao enumerarmos as roupas de Eco, podemos descobrir ali uma
parte do seu modo de ser, da sua identidade. Pois estar vestido é, quase
sempre, o mesmo que estar nu. Uma lista de objectos pessoais pode-nos
dizer muito sobre o carácter psicológico da pessoa que usa esses
objectos.
Sentado no seu sofá, Eco dá
precisamente uma entrevista sobre enumerações, contagens, listas. É que
acaba de ser editado o seu novo livro com o título “ A lista
interminável “e é igualmente esse o título da exposição que se encontra
desde 7. de Novembro no famoso museu do Louvre sobre listas e
enumerações de que Eco é curador.
O livro, bem como a exposição, debruçam-se
sobre a essência de listas, ou seja, sobre poetas, escritores e
artistas, que nas suas obras, fazem enumerações das mais variadas
coisas.
Diz Eco que a lista é uma das origens
da cultura, parte integrante da arte e da história da literatura. E
pergunta: “ O que procura a cultura? “ E ele mesmo responde: “
a cultura procura deixar- nos compreender o incompreensível.”
Isto é, o homem sempre se sentiu fascinado
perante a imensidão do universo: por todo lado estrelas, galáxias e
galáxias. Como é que um homem se sente quando numa noite estrelada olha
para o firmamento? Ele descobre simplesmente que não tem palavras que
cheguem para descrever o que vê. No entanto, embora sabendo que as
palavras não chegam, o homem nunca deixou de tentar catalogar aquilo que
vê. Bem como nunca deixou de tentar exprimir os seus sentimentos. E para
isso usa listas. Por exemplo dois apaixonados dizem um ao outro: os teus
olhos são bonitos, a tua boca, as tuas pernas, a tua voz etc. isto já é
uma lista.
Listas e enumerações, seja do que for,
sempre acompanharam o homem ao longo dos tempos, ou antes, são uma parte
inerente da sua cultura, ou como Eco afirma, origem da cultura. Segundo
Eco, listas não são coisas típicas, como poderíamos pensar, das
civilizações mais primitivas, quando o homem ainda não tinha uma noção
concreta do universo. O homem sempre fez listas, seja na antiguidade, na
idade média, durante o renascimento, no barroco etc. E, sobretudo, na
postmodernidade a lista ganha grande realce.
Há listas de plantas, de títulos, de
santos, de filósofos, de escritores, de músicos, de escultores, de
moedas, de preços, de comida, de rações de combate, de preservativos, de
compras, etc. e segundo a lista do libretista de Mozart, Lorenzo da
Ponte, Don Giovanni terá dormido com 2063 mulheres. Como vemos há listas
para tudo.
Mas terá a lista, que tem quase sempre uma
função prática, alguma coisa a ver com a arte e, sobretudo, com a
poesia?
Embora, a uma primeira vista, sejamos
tentados a responder que não, a verdade é que na poesia moderna
encontramos muitos poemas que têm uma estrutura bastante próxima da
lista. A técnica da enumeração própria de muitos poetas modernos,
centrada no substantivo, é uma prova disso. Vejamos alguns versos de um
dos mais belos poemas da poesia moderna portuguesa (Rodopio) em que a
enumeração ou listagem é levada até às suas últimas consequências e que
exemplifica bem o que acabámos de dizer:
Volteiam
dentro de mim,
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,
Altas torres de marfim.
Ascendem hélices, rastros...
Mais longe coam-me sois;
Há promontórios, faróis,
Upam-se estátuas de heróis,
Ondeiam lanças e mastros.
[... ]
Cristais
retinem de medo,
Precipitam-se estilhaços,
Chovem garras, manchas, laços...
Planos, quebras e espaços
Vertiginam em segredo.
[... ]
Há incenso de esponsais,
Há mãos brancas e sagradas,
Há velhas cartas rasgadas,
Há pobres coisas guardadas -
Um lenço, fitas, dedais...)
Há elmos, troféus, mortalhas,
Emanações fugidias,
Referências, nostalgias,
Ruínas de melodias,
Vertigens, erros e falhas.
[... ]
Há vácuos, há bolhas de ar,
Perfumes de longes ilhas,
Amarras, lemes e quilhas -
Tantas, tantas maravilhas
Que se não podem sonhar!...
O fascínio e a força e originalidade deste
poema de Sá-Carneiro estão precisamente assentes na impressionante e
alucinada forma da enumeração. Podemos dizer que ao enumerar, criando um
poema- lista, Sá-Carneiro consegue dar a estas enumerações
caóticas uma forma, neste caso de espiral, evitando assim que o poema se
desintegre no puro caos. Quer dizer a lista tem neste poema, tal como no
seu sentido prático, um carácter formal regulador: ao fazermos
enumerações arrancamos não só as coisas do seu silêncio, mas também lhes
damos uma determinada organização. Organizar é tirar do caos. A lista
será assim uma espécie de bússola que nos orienta através das selvas do
caos.
Mas a lista também pode significar uma
tentativa de escape, pelo menos na imaginação, à morte. Diz Umberto Eco:
“ Nós temos uma fronteira, uma
desencorajadora e vergonhosa fronteira: a morte. Por isso gostamos
de tudo aquilo que pensamos ser infinito. Essa é uma possibilidade
de esquecermos e fugirmos à morte. Nós gostamos de listas porque não
gostamos de morrer. “
Quer dizer, a lista dá-nos uma certa
segurança existencial, no centro da absurdidade existencial, perante um
mundo inseguro, que nos transcende, e sobre o qual pouco sabemos.
Enumerar ou ordenar dá-nos uma sensação
de bem-estar. Quando Catalogamos, ou ordenamos, sentimos uma espécie de
sentimento de eternidade. É como se pudéssemos manobrar aquilo que
enumeramos à nossa boa e livre vontade, como se fôssemos senhores de
alguma coisa. Por um curto momento sentimo-nos quase elevados a deuses.
Pois fazer listas é uma espécie de jogo e brincadeira. E, como sabemos,
só os deuses tem de facto o condão de jogar e brincar uma vida inteira.
O homem, pelo contrário, no seu dia-a-dia, tem lutar e trabalhar para
sobreviver.
Para além do que acabámos de dizer, uma
lista também pode ter um carácter transcendente: um homem morre, mas ao
ser enumerado, ou nomeado, nos arquivos ( lista ) do registo civil,
tanto como data de nascimento (dia, hora, lugar filiação, etc.) bem como
data de morte, ele transcende, por assim dizer, o tempo histórico, a
morte. Pois que quem visitar aquele ficheiro saberá que entre aquelas
duas datas existiu um sujeito com este ou aquele nome. Aquela lista
tira-o, por assim dizermos, do esquecimento e do anonimato, dá-lhe uma
biografia. Portanto a lista é uma memória que dá uma existência ao
sujeito para lá da morte, ou seja, a lista permite que o nome continue a
ser nomeado (existir numericamente) dentro dos arquivos humanos, para
além do corpo.
Conclusão: a lista ou a procura de
segurança no caos existencial. A lista ou a procura da imortalidade na
enumeração do registo civil. A lista – um forte pilar da cultura. |
Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.
Depois de passar três anos num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo. Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.
Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.
http://oarcoealira.blogspot.com/ |