Durante a apresentação do seu novo livro, "
Caim " , há uns dias atrás, em Penafiel, José Saramago, falando de Deus,
dizia mais ao menos o seguinte: " deus não existe. Deus é uma ideia na
cabeça. Nada mais. Deus é cruel etc. " Digo: Saramago tem razão e não
tem. Ora, a nosso ver, com esta asserção o nosso Saramago (o qual eu
gosto de ler) contradiz-se. Mas contradiz-se como ? E Porquê ?
Vejamos:
1) Se deus não existe , como Saramago nos
diz, então como é que ele pode, logo de seguida ,afirmar que deus é uma
ideia ? ( Deus não existe, logo não pode ser seja o que for ) E se Deus
é uma ideia, perguntamos : mas não são as ideias existentes (
realidades ) ? Não é a nossa cultura construída a partir de um enredo de
ideias ? Não são as ideias causas que provocam efeitos no mundo
psicológico e físico ? Não é verdade que as transformações sociais etc.
começam sempre por ser ideias, só depois se tornam actos e factos ?
2) Saramago é ateu. Ateu quer mais ao menos
dizer : contra Deus. Mas então como é que eu posso ser contra alguma
coisa se essa coisa não existe ? Será o Saramago um Dom Quixote da era
moderna ? Não estará ele antes a inventar deus, tal como Dom Quixote
inventou moinhos de vento ? Que eram reais para Dom Quixote, para Sancho
Pança não.( Mas o que é a realidade? Quem pode afirmar: isto é a
realidade? )
3) Saramago afirma ser comunista, ou antes
marxista. Perguntamos : o que é o comunismo ou o marxismo ? Ora pois,
exactamente, são ideias. Mas não é o marxismo e o comunismo uma coisa
real ? Não o sentiram no corpo e na alma o povo da antiga União
Soviética para não falarmos em Cuba e noutros países de leste ? Será
Saramago capaz de afirmar que o marxismo não existe ? Certamente que
não . Ora não acontece precisamente a mesma coisa com Deus ?
4) Já no que diz respeito ao deus cruel,
damos razão a Saramago. Pois de facto o deus que nos é apresentado na
bíblia é um deus que está sempre pronto para castigar aquele homem ,
que ele mesmo criou à sua imagem. Muitos exemplos poderíamos aqui
apresentar. Há de facto uma veia sadista nesse deus. Perguntamos: como é
que um pai pode ser tão cruel para com um filho ?
5) Contudo dizemos também : se é verdade que
se praticaram crimes horrendos, ao longo dos tempos até aos dias de
hoje, em nome de Deus (a inquisição foi um desses exemplos) também em
nome desse mesmo deus têm sido praticadas boas obras, obras de grande
valor humanitário. Isso nem Saramago, nem ninguém o pode negar.
6) E o que seria da obra de Saramago sem
Deus ? Será que algum dia teria escrito aquele romance notável que dá
por nome de " O Memorial do Convento " ? Ou " O Evangelho Segundo Jesus
Cristo " ? Ou a peça de teatro " In Nomine Dei " ? etc.
Deus encontra-se muito presente ao longo de toda a
obra de Saramago, nem que seja numa simples frase irónica , como esta,
que muito nos agrada, e que passamos a citar, extraída dos " Cadernos
de Lanzarote, Diário IV" :
[… ] e Deus, tendo indiscutivelmente nascido de
si mesmo, está claro que nasceu do melhor que havia no seu tempo.
Parece-nos que este escritor deve muito do seu
êxito literário a um Deus que ele tanto contesta. certamente que a obra
de Saramago sem a presença de Deus seria outra ( e só por isso
poderíamos dizer que Deus existe ) talvez melhor, talvez pior. Isso
nunca o poderemos saber. E quem sabe: talvez o ódio de Saramago por
deus seja até um amor invertido.Uma forma de religião outra,
extravagante.
Conclusão : Saramago afirma o que praticamente não se
pode afirmar. Melhor seria dizer :
- Os homens são capazes de fazer uso de Deus
tanto para o bem como para o mal. Na maior parte dos casos têm-no,
infelizmente, usado para o mal.
- Não é o homem que é feito à imagem de Deus,
mas sim Deus que é feito à imagem do homem. Não é verdade que Deus está
no mundo graças ao homem? Não é verdade que só o homem é capaz de
pronunciar a palavra Deus e de lhe outorgar certos atributos? Quer
dizer, é só pela palavra do homem que Deus se faz Deus e assim entra na
história. Se o homem fosse mudo, isto é, não tivesse linguagem, como é o
caso dos animais, poderia existir a ideia de Deus?
- Não é Deus que se usa dos homens, mas sim
os homens que se usam de Deus, a seu belo prazer, para seus próprios
interesses.
- O mal não está em Deus, mas sim nos
homens, tal como o mal não está nas armas - mas sim nos homens.
Luís Costa, 2009 |