O vento de nordeste sopra,
o mais querido entre os ventos,
para mim, porque,
com espírito fogoso,
promete boa viagem aos navegantes.
Agora, vai e saúda o belo Garona
E os jardins de Bordéus,
Além, onde na margem estreita
há um pontão, e o ribeiro se
afunda na corrente; mas lá do cimo
um nobre par de castanheiros
e álamos brancos observa o mundo.
como bem me lembro
da floresta de ulmeiros dobrando
o extenso cume, por sobre os moinhos.
No pátio, porém, cresce uma figueira.
Aos feriados, mulheres
Bronzeadas seguem
por caminhos de seda,
Até ao tempo de Março,
Quando o dia é igual à noite,
E em cima de vagarosos pontões,
Pesados como sonhos de oiro,
correm ventos harmoniosos .
Basta que me estendam,
Repleta de luz,
Uma das aromáticas taças
Para que possa descansar; pois doce
É a sombra do dormitar.
Porém não é bom,
Que, sem compaixão, se pense
nos mortos; mas é bom
Conversar-se e dizer-se o que nos
Vai no coração e ouvir muitas coisas
Sobre o dia do amor
E dos feitos que aconteceram.
Mas onde estão os amigos? Belarmino
com os companheiros? Alguns
Têm receio de descer à fonte;
A riqueza começa no mar.
Eles, como os pintores,
juntam a beleza da terra
e não receiam as asas da guerra,
e não temem viver sozinhos, anos
e anos, debaixo do mastro glabro, onde os
feriados da cidade não iluminam a noite,
nem se ouve o toque das cordas,
nem os nativos dançam.
Mas agora, os homens
foram ter com os índios, além,
Junto ao ventoso pico, nos vinhedos,
onde o Dordonha desce
e junto com o Garona,
largo como um mar,
dispersa a corrente. E o mar
tanto dá como recebe lembranças,
e o amor também se pega aos olhos
mas o que fica,
é fundado pelos poetas. |
DUAS PALAVRAS SOBRE O HINO LEMBRANÇA DE FREDERICO
HÖLDERLIN
O
Hino “ Lembrança “ de
Frederico Hölderlin é talvez um dos mais belos e mais bem conseguidos
poemas que este grande poeta escreveu. E é igualmente um dos seus mais
famosos. Os versos finais: was bleibet, aber stiften die Dichter,
uma variante do verso “durat, opus vatum “ de Ovídio, pelo menos,
tornaram-se num verdadeiro “ slogan” do século XX. E se há
pessoas, seriamente interessadas por poesia, que possam não conhecer
este poema, e pouco saibam do poeta e do homem Hölderlin, já no que diz
respeito aos últimos versos deste belo poema, certamente os terão lido
ou ouvido em qualquer lado; visto que têm sido, e continuam a ser,
citados, seja em epígrafes, ou no corpo
de ensaios, dissertações ou em entrevistas, ao longo de todo o século XX,
até aos dias de hoje, constantemente. Poderíamos mesmo dizer que estes
versos se tornaram numa espécie de Leitmotiv para muitos dos
poetas modernos. Basta, como exemplo, pensarmos em
Rilke, Trakl, Celan, Georg, René Char, Pierre Jean Jouve, André du
Bouchet etc..
Hölderlin escreve este poema entre 1803/1804, ou
seja, pouco tempo depois do seu regresso de Bordéus à Alemanha, o qual é
publicado pela primeira vez no Seckendorfs Musenalmanach em 1808.
O poeta vivera em Bordéus, entre Janeiro e Maio
de1802, onde fora professor privado na casa do cônsul Meyer Hofmeister.
Aqui ele descobre uma grande cidade, o mar e a paisagem do sul, onde
ainda se encontram vestígios da Revolução Francesa, que tanto fascinara
a sua geração (Hegel, Schelling etc.). E, como o próprio poema o bem
demonstra, esta cidade e a paisagem do “ sul “ de França provocaram-lhe
um sentimento de bem-estar e encanto na alma. Contudo , apesar disso,
poucos meses depois da sua chegada, Hölderlin resolve, inesperadamente,
por motivos até hoje desconhecidos, regressar à Alemanha.
Do seu regresso à Alemanha até ao internamento na
Autenrieth’sche Klinik em Tubinga, decorrem poucos anos. Portanto este
poema já pertence à fase final da obra de Hölderlin (é um dos seus
últimos grandes hinos), escrita antes da sua loucura, que vai durar
desde 1806 até à sua morte em 1840.
Este hino, ao contrário de muitos dos hinos de
Hölderlin, não assenta numa estrutura triádica, ou seja, não obedece aos
requisitos da dialéctica, tão peculiar neste poeta, de tese, antítese e
síntese.
O título Lembrança é aqui usado num duplo
sentido: este poema recorda um dado momento no espaço e no tempo da vida
de Hölderlin, ou seja, a sua passagem por Bordéus, que tanto o fascinou,
mas é, ao mesmo tempo, ele mesmo, uma lembrança (no sentido de presente
que se oferece: oferta, souvenir ), independente da recordação que o
inspirou: lembrança mediadora para os homens do futuro. Esta recordação
que lembra um tempo passado, projecta-se no futuro, ela aparece-nos aqui
como o ponto que liga todos os tempos: passado futuro e presente, o
centro da circunferência: O tempo em que “ o dia é igual à noite.”
Por isso Bordéus é o lugar espacialmente mítico,
simboliza um espaço de encontro: espaço onde o tempo dionisíaco,
arcaico, ou genésico (Mas agora os homens foram ter com os índios, *
além, Junto ao ventoso pico, nos vinhedos [...]) e o tempo moderno
da revolução francesa, do criticismo, enfim das novas ideias, se
engrenam um no outro. Aqui, neste espaço,
Bordéus, cidade europeia e moderna, onde o
Dordonha desce/ e junto com o Garona, / largo como um mar, dispersa a
corrente que leva o
homem até a Índia, a terra natal de Diónisos ( a fonte da
cultura antiga), realiza-se aquilo que Hölderlin sempre desejou, a fusão
de duas culturas, a antiga ( dionisíaca ) e a moderna ( apolínea ) :
“ A riqueza começa no mar. Eles, como os
pintores, juntam a beleza da terra. “
No entanto, como já dissemos, este hino não obedece
a uma estrutura triádica. Ao longo dele vamos encontrando vários pares,
que coexistem lado a lado, em harmonia, sem que seja necessária uma
síntese, ao contrário da dialéctica que opõe sempre os pares para chegar
a uma síntese, isto é, à dissolução de cada um dos pares.
Vejamos, como exemplo, alguns dos pares que nos vão
aparecendo ao longo deste poema: “ um nobre par de castanheiros / e
olmeiros brancos “, a margem e o ribeiro, o
Dordonha e o
Garona, a floresta de ulmeiros ( a cultura ocidental), a
figueira ( a cultura oriental, figueira também símbolo de Diónisos
), o mar, a terra, Belarmino e os companheiros etc.
Como ponto de mediação entre os vários pares
aparecem-nos os pontões ( “ onde na margem estreita há um pontão
“ ) , pois que nesses pontões “ vagarosos correm ventos harmoniosos.
“ Pontões esses que juntamente com os barcos e a água, símbolo
mediador ( o mar os rios ), permitem a tal fusão dos contrários sem a
dissolução de nenhuma das partes, podendo estes conviverem lado a lado,
em perfeita harmonia. O pontão e a ponte ocupam uma posição relevante na
poesia de Hölderlin. Já que permitem essa tal ligação harmoniosa entre o
que o se encontra separado, ou os contrários, sem os anular, ou
destruir.
Nos seguintes versos da última estrofe, Hölderlin
diz-nos que:
E o mar
tanto dá como recebe lembranças,
e o amor também se cola aos olhos
Pretende ele com isto dizer que o poema, partindo
de acontecimentos históricos ( o mar tanto dá como recebe lembranças
) funda um tempo próprio, o que fica, “ A lembrança “ ,o não
tempo, isto é, realiza a união das coisas para lá desse tempo
histórico ( tempo que em si mesmo não existe, pois que é transitório ),
dando-lhe um carácter eterno. Isto acontece por meio do amor ( o amor
também se cola aos olhos ), o amor é o médium , pois aquele que ama
deseja guardar a coisa por ele é amada e deseja igualmente perpetuá-la
na memória de um sempre futuro.
A poesia encontra-se, neste caso, muito próxima da
linguagem do Ser, o qual transcende o tempo histórico, pois que, tal
como o Ser, ela não obedece às categorias nem às volições do tempo
humano. Ela guarda as coisas e por meio do cântico torna-as herança dos
homens do futuro, de todos os tempos. Pois o poeta “ stiftet “ ( funda
), é fundador, fundador da memória, ele guarda a memória das coisas, a
sua essência, e dá-a aos homens do futuro. O tempo deste “ Stiftung “ (
fundação ) é o tempo que permanece, tempo no tempo, o tempo da presença
absoluta, o tempo que existe nas coisas, da marcha cosmológica onde o
transitório (o momento) se eterniza e perpétua na palavra do poeta; ele
que, ao contrário dos outros homens, não tem qualquer receio em descer à
“ fonte “. Por isso o poema torna-se no lugar par excellence:
lugar onde ainda é possível a reconciliação de todas as dicotomias e
antagonismos que povoam a consciência humana, a fundação de um tempo no
tempo, a captação do centro que liga todos os tempos, o tempo da
poesia.
Por isso nos dois versos finais o poeta canta:
Mas o que fica
É fundado pelos poetas |
Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.
Depois de passar três anos num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo. Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.
Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.
http://oarcoealira.blogspot.com/ |