“Sobre um Poema“, de Herberto Helder, é um poema que podemos chamar metapoético, visto que procura explicar o que é um poema, e reflecte sobre o modo como o poema nasce, e sobre o processo como ele se manifesta fenomenologicamente (palavra oral e escrita) no espaço e no tempo, isto é, como corpo histórico.
Sendo este poema, como acabamos de dizer, um acto metapoético, isto poderá levar o leitor mais interessado a tentar interpretá-lo sob um perspectiva de teoria poética ou sendo mais exacto, tentar captar dali uma teoria poética sobre o nascimento do poema e a sua projecção no espaço e no tempo.
Ora diz Herberto no verso 15 (último da segunda estrofe) e no 16 (primeiro da terceira estrofe) o seguinte:
[... ]
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
[... ]
De facto assim é: o poema depois de se tornar palavra, isto é de se libertar do círculo do silêncio, do lugar interior ou anterior, absoluto (fora do espaço e do tempo), tornando-se histórico, toma tudo em seu regaço, incluindo o que se encontra de fora, (Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência [...] / Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor […]), pois o poema também fala de tudo quanto existe no mundo, e por isso absorve-o com o seu material de construção que é a palavra, todas as palavras. Ele nomeia as coisas. E por meio desta nomeação ele testemunha o mundo. O testemunho é uma coisa que passa de mão em mão. Assim, pelo menos enquanto a raça humana existir, ele será indestrutível. No entanto ao testemunhar o mundo, o poema tem, ao mesmo tempo, o poder de reinventar e realizar um outro mundo, o mundo da liberdade e harmonia da palavra dentro do círculo poético:
[...]
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
Com a redonda harmonia do mundo deve-se compreender o mundo em toda a sua dimensão e totalidade, que é a esfera da arte e da poesia, para lá de toda e qualquer moralidade humana, demasiado humana. Aqui nada fica de fora ou é excluído. No mundo do poema e no mundo real de que o poema partiu, e absorveu, tudo existe em pela harmonia: a harmonia do Ser. Destruição e construção, morte e nascença, ausência e presença, negativo e positivo, completam-se e complementam-se: são unos. Encontramo-nos no lugar dos lugares. O lugar redondo: a redonda e livre harmonia do mundo, lugar da integridade total. Segundo o poeta e filósofo grego Xenófanes: Deus é uma circunferência porque esta é a forma mais perfeita e harmoniosa que existe. Todos os pontos estão à mesma distância do centro e tanto o centro como o raio não podem existir um sem o outro. Por outras palavras podemos dizer com Hegel: “ a verdade é o todo. “
Ainda que se rasguem todos os livros em que foi publicado, ainda que se proíba aquele poema, o mundo do poema, a circunferência do poema, permanecerá e viverá na memória do leitor, ainda mesmo quando só em estado fragmentário e ainda mesmo quando não em todos os leitores que o leram. Mas aquele leitor que o leu e memorizou, porque o amou, o sentiu e se identificou com aquelas palavras, como se fossem suas, certamente o dará a conhecer a gerações futuras. Por isso o poema não morre. O poema passa de boca em boca e ultrapassa sempre, embora também o sendo, o simples estado de objecto histórico. Foi precisamente isto que aconteceu com a Odisseia e outros poemas antigos: eles foram levados de boca em boca, num movimento oral, pelos antigos bardos, até que um dia alguém os passou para o barro, para o papiro, para o pergaminho, para o papel, até à era da digitalização.
É claro que nos dias de hoje, no tempo da era da informática e dos computadores, o poema depois de ter nascido jamais desaparecerá: falamos aqui, sobretudo, dos poetas editados, como é o caso do Herberto, e de todos aqueles que no futuro, mesmo quando postumamente, virão, provavelmente, a ser editados.
Os dois primeiros versos, da última estrofe, são impressionantes e levam-nos a reflectir sobre o poema e o poeta como instrumentos. Passo a citar:
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
O instrumento pelo qual o poema se deu ao mundo é o poeta. O poeta serve o poema para que se possa chamar poeta por isso é um instrumento do poema. No entanto devemos também dizer que o poeta é que dá o poema ao mundo, sem o poeta não era possível haver poema. Portanto o poeta e o poema criam-se e recriam-se mutuamente. Neste processo de reciprocidade total, encontramo-nos perante aquilo a que chamamos poesia. A Poesia resulta do poeta e do poema. Quer dizer o poeta e o poema são ambos instrumentos. Por isso tanto o poema como o poeta nada nos podem dizer da espinha do mistério, ou seja, da origem do poema e sobretudo da espinha do mistério que é a poesia. A poesia que por sua vez inventa o poeta e o poema. A poesia no entanto será sempre um mistério que tanto o poema como o poeta “ ignoram “, pois que ela pertence ao domínio do ser. O poeta canta mas não sabe bem por que canta, há algo mais forte do que ele que o impele para o cântico. Neste acto inexplicável, o poeta é o “ instrumento perplexo “ pois que “ ignora “, isto é, nunca saberá muito bem nem o que é a poesia nem como o poema se torna corpo. Por isso também:
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
O poema “ cresce “inseguramente porque o poeta jamais poderá ter a certeza que o ímpeto que o levou a escrever, ímpeto “ na confusão da carne “ ímpeto total, que ainda se encontra no reino abstracto da alma e no pulsar imediato dos sentidos “ só ferocidade e gosto “, ainda impreciso e misterioso, se virá a realizar como um corpo total e íntegro: o poeta não sabe praticamente nada daquele poema. O poeta é um cego, visto que o poema ainda pertence ao domínio do ser, ainda se encontra fora do reino do fenómeno. Por isso o poeta diz que o poema talvez seja como sangue ou como sombra de sangue nos canais do ser. Quer dizer o poeta nada pode saber, nem dizer sobre o poema. O futuro corpo do poema está escrito nas estrelas. Podemos então dizer que, segundo esta poética, a escrita de um poema é sempre um acto misterioso. A essência do poema encontra-se assente no mistério. O poema é a linguagem do indizível ou mistério. Este é um poema da poética do mistério. Segundo esta poética o poema não tem como fim resolver esse mistério, mas somente mostrá-lo ao mundo: o poema é a revelação do mistério, que é a poesia. O seu dever é mostrar e conservar esse mistério.
Por isso também, embora nascendo da confusão da carne e talvez do sangue, embora sendo matéria verbal, portanto um existente, uma coisa, um aqui e agora:
“ o poema faz-se contra o tempo e a carne. “
O poema que cresceu, inseguramente, insurge-se, agora, já corpo viril, contra o tempo e a carne. Isto acontece porque ele ultrapassa e transcende a capacidade da lógica racionalista e histórica do homem. O poema transforma tudo quanto toca, é contínua transformação, mas conserva em si, ao mesmo tempo, a magia das origens.
O poema é um maravilhoso paradoxo: Ele deixa-nos compreender as coisas e o mundo à luz de uma outra lógica: a lógica da palavra poética que, embora nascendo e se processando num determinado tempo e espaço históricos, transcende sempre esse mesmo tempo e espaço históricos, ou seja, é uma linguagem de todos os tempos, transcendente e cósmica: a linguagem do indefinível, vinda até nós pelos canais do ser, portanto linguagem do ser, isto é, linguagem do grande mistério que é o TODO.
***
SOBRE UM POEMA
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder, em Ou O Poema Contínuo |
Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.
Depois de passar três anos num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo. Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.
Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.
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