LUÍS COSTA::::::::::::

Nos aposentos de Fausto

Para o Miguel de Carvalho

Levanto-me
ave caída entre séculos prostitutos
que toca a sequiosa luz
que toca o suco das sombras
o lugar onde correntes e chicotes golpeiam as costas dos dias,
o lugar da embriaguez
 um grito de sonhos húmidos de alcatrão
um grito de densidade negra
um uivo de sol no centro do dia

Não sei se é a luz
ou a escuridão que me habitam
não sei se estou ou não estou
terei tocado o vazio da luz?
A vibração dos pés de Orfeu?
não,
não sei,
mas levanto-me
e ergo-me
de mim
contra deuses e semideuses
ergo-me
do fundo da minha matéria
da memória entre pequenas ilhas
a guerra silenciosa
ou um  pus  de poeira ou ferrugem
o cântico que me arrebata
o cântico que me ergue,
ergo-me
do canto
com esta boca visceral que me habita
esta boca
coisa sem nome,
obscura liberdade  que me impele a cantar


E em meu redor
portais que se abrem dentro de espelhos quebrados
finas mulheres de lábios carmim
bebendo cerveja,
emparedadas na roda dos cafés do nada,
as altas horas da noite,
um vento artificial,
mas benigno,
que vagueia  pelas ruas
um vento que  envolve o mundo com uma doce notícia 
das areias do Saara,
uma notícia  surreal no saco do Facteur Cheval,
que distribuía cartas de amor, sonhos e loucura
de porta em porta em porta
com uma pedra luminosa nas mãos

Ah meu amigo Cheval !
( Lembro-me que dormias com a mulher do meu vizinho
e me pedias que não dissesse nada a ninguém ),
este é o lugar dos meus desejos
uma folha que se completa no som dos hieróglifos
que deixas à minha porta

Eu sei,
eu sei
que em cada nova hora habita o esqueleto da morte
uma lambidela no reverso do selo obscuro
o prazer de espetá-lo no sobrescrito dos dias
até que o sangue jorre,
até que o sangue jorre
quando as senhoras das estações de correios
- tão simpáticas! - dizem:
"olha!  lá vem aquele que lambe os selos"*
e sinto o ácido metálico que abre fissuras nas recordações
 bisontes que se erguem dentro da minha cabeça
um mugido de ácido sulfúrico nos rins
quais mãos  ou cabelos que me ardem na gargante,
 ou calos que me crescem na alma
e se dispersam,
 magnificas verrugas,
pelas máscaras do eu

Ó mascaras que me quebrais o rosto cansado!
como se o fim do mundo não fosse a coisa mais natural da vida,
como se o objectivo da vida só fosse a morte
Ó bela esperança ou herança!
 lotaria ou jogo de xadrez
engendrado nas cavernas dos úteros pensantes...

E com o rotor do delírio na boca
não sei se habito o mundo, 
ou se é o mundo que me habita,
não sei se moro na cidade
ou se é a cidade que mora em mim
mas movimento-me
no disco da coisa sem nome
no veio das transparências
no canto do olho tatuado de sonhos
movimento-me
sem fingimentos estéticos,
sem afamadas teorias
sem  novelísticos preceitos
na luz transparente da água,
na luz,
entre ondas oscilantes
no esquecimento do abandono
movimento-me...
................................................

Por isso
sou um mar selvagem que rebenta as amuradas matinais
um mar que suja as paredes brancas com o ódio de Deus,
um mar no peito das mulheres
que esperam por seus maridos até altas horas da noite
mulheres com sexos húmidos de desespero
mulheres de um velho mar dentro de um navio roto de bebedeiras,
sem remadores
nem compassos,
sem  nónios
nem astrolábios,
um mar de vingança ou amor
um mar de destruição ou luz,
mar de uma raça apodrecida
mar  inventado sob o esqueleto de um Deus morto,
olhos da lâmpada que impassível nos espreita,
olhos
universo frio de silêncios,
borbulhante glaciar...

Ó raça que esperas o regresso da pomba
que talvez nunca regresse
um regresso sem regresso,
 leite de trevas que corre pelos canais
do desvario
 leviandade no buraco negro da ilharga de Cleópatra
o vermelho do sono numa folha vibrante
ou a tortura da mudez escarlate no canto  pessoano ,
do qual  descreio

E descreio das belas palavras dos metálicos poetas,
senhores emparedados em milagrosos Büros,
senhores de babélicos arranha-céus
Senhores de gravatas bem engomadas
 Senhores,
como se fossem donos do mundo
como se fossem donos do mundo

Sim, descreio!

não creio!

Não creio
na passividade do verbo bem lapidado
nos dentes bem lavados ,
muito brancos,
tão brancos que ofuscam o próprio sol,
creio antes nos cornos revirados da violência de Amun
no riso sarcástico de Mefistófeles
nos carneiros que quebram as pedras dos templos,
na sua insolência
crua como um sexo aberto sob a luz que cai a pique
ou um rio que se abre, monstruoso, em todas as direcções,
um rio de mil braços
um delta talvez que se agite como uma estrela em vias de extinção
um delta que abarque tudo com os seus  tentáculos de  incerteza
um  maravilhoso delta que  tudo quebre,
um golpe mortífero nas entranhas de Fausto

à meia-noite

- para que do álcool da carne se faça esperança

* Tirado de um email que o Miguel de Carvalho me escreveu.

Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de  Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.

Depois de passar três anos  num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo.  Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.

Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.

http://oarcoealira.blogspot.com/