:::::::::::::::::::::LUÍS COSTA::::::::::::
Terra Prometida

Si percorre il deserto con residui
Di qualche immagine di prima in mente,
                                                                           Della Terra Promessa
                                                                           Nient’altro un vivo sa

                          In: Ultimi cori per la terra, promessa 5,
Giuseppe Ungaretti

                                                            

Sou filho dos desertos, da secura das fontes, do brilho da areia perturbante.

Na minha pele trago as marcas das rochas areosas na noite das eras.

84 anos, José! 84 anos às voltas... Quantos morreram! Quantos nasceram! Quanta água não correu pelo Mondego! Quanta e quanta água...

Foram as cabras da Beira-Alta, ao sopé da Serra da Estrela, que te ofereceram o seu fresco leite para que os dentes não te apodrecessem, dentes claros como clara cal! Foram as ovelhas da Beira-Alta que te ofereceram a sua benigna lã para que não morresses ao frio. Foram elas também que te ofereceram o seu queijo e a sua carne tenra como mimosas ao amanhecer  para que o teu corpo não mirrasse.

Ah! como o sangue corria nos açougues! Era uma fonte gorgolejante!

E assim cresceste com alma sã em corpo de mastro, elástico e moreno...

O teu olhar ainda hoje lembra o céu dos polos. Quem sabe se não serás descendente de antigos árabes e visigodos que por aqui deambularam e enriquecidos de rosmaninho, no prazer dos hieróglifos, se amaram  e copularam. Quem sabe, José! Quem sabe!

Era à volta da fogueira que as estrelas se vinham sentar no teu colo. Era por elas que te orientavas. E a lua cheia poisava-te entre as mãos. O teu rosto iluminava-se, era um lago claro. Noites profundas! Perfumes de pinho! Perfumes de eucalipto! Noites beirãs, lá ao fundo a Serra da Estrela, tocando o infinito.

E a voz da tua avó, que não sabia distinguir um O nem que fosse do tamanho de um boi, jorrava do fundo da terra, era um suave granito, perfurava a noite dos dias, era o mundo incendiando-se, era o mundo incendiando-se...

Eram histórias de tempos obscuros, mas imaculados: lobisomens que corriam sete freguesias numa só noite, bruxas transformadas em galinhas, fadas, anjos caídos, rainhas apaixonadas por sapos, ululares de almas perdidas, milagres, mártires, encruzilhadas, bosques encantados...

E tu encolhias-te todo, José; fascinado e a tremer enrolavas-te nos poderosos e dóceis braços da tua avó.

Um dia deixaste tudo isto, partiste pelo mundo fora. Acreditavas agora na liberdade dos homens. No brilho das revoluções. Tinhas lido muita poesia e Filosofia, José. Baudelaire e Rimbaud, Jesus e Buda, Lenine, Engels e Marx eram os teus heróis.

“O mundo não deve ser interpretado, o mundo deve ser transformado!“

O coração pulsava-te nas  mãos. Trazias na testa a ciência da juventude. Amaste, odiaste, percorreste todos os becos do mundo, conheceste toda a podridão humana.

Mas acreditavas na terra prometida. Ah a terra promessa!

84 anos, José. 84 anos às voltas... diante das tuas pálpebras cansadas de tanta hipocrisia, sempre e ainda uma imensa terra verdejante: os campos bem cultivados, o leite e o mel correndo, os bois, a charrua, os rebanhos descansando na sombra, junto ao ribeiro, a fresca água correndo por entre os dedos de crianças sorridentes, os canaviais, os olivais, os vinhedos, o vinho fervendo nas ânforas...

Eis a terra por que tanto sonhaste, José! Ei-la, finalmente, aqui e agora, diante dos teus olhos enrugados e cansados, incapazes de distinguirem já o voo das aves.

Eis como a terra se abre, luminosa, de par em par, qual um grande portal para te receber. Mas os músculos já não te obedecem, José. Já só um adeus te resta, um evoé à terra que só em sonhos habitaste.

 

Luís Costa, Züschen 2008

Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de  Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.

Depois de passar três anos  num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo.  Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.

Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.