Sou filho dos desertos, da secura das fontes, do brilho da areia perturbante.
Na minha pele trago as marcas das rochas areosas na noite das eras.
84 anos, José! 84 anos às voltas... Quantos morreram! Quantos nasceram!
Quanta água não correu pelo Mondego! Quanta e quanta água...
Foram as cabras da Beira-Alta, ao sopé da Serra da Estrela, que te ofereceram
o seu fresco leite para que os dentes não te apodrecessem, dentes claros como
clara cal! Foram as ovelhas da Beira-Alta que te ofereceram a sua benigna lã
para que não morresses ao frio. Foram elas também que te ofereceram o seu queijo
e a sua carne tenra como mimosas ao amanhecer para que o teu corpo não mirrasse.
Ah! como o sangue corria nos açougues! Era uma fonte gorgolejante!
E assim cresceste com alma sã em corpo de mastro, elástico e moreno...
O teu olhar ainda hoje lembra o céu dos polos. Quem sabe se não serás
descendente de antigos árabes e visigodos que por aqui deambularam e
enriquecidos de rosmaninho, no prazer dos hieróglifos, se amaram e copularam.
Quem sabe, José! Quem sabe!
Era à volta da fogueira que as estrelas se vinham sentar no teu colo. Era por
elas que te orientavas. E a lua cheia poisava-te entre as mãos. O teu rosto
iluminava-se, era um lago claro. Noites profundas! Perfumes de pinho! Perfumes
de eucalipto! Noites beirãs, lá ao fundo a Serra da Estrela, tocando o infinito.
E a voz da tua avó, que não sabia distinguir um O nem que fosse do tamanho
de um boi, jorrava do fundo da terra, era um suave granito, perfurava a noite dos
dias, era o mundo incendiando-se, era o mundo incendiando-se...
Eram histórias de tempos obscuros, mas imaculados: lobisomens que corriam
sete freguesias numa só noite, bruxas transformadas em galinhas, fadas, anjos
caídos, rainhas apaixonadas por sapos, ululares de almas perdidas, milagres,
mártires, encruzilhadas, bosques encantados...
E tu encolhias-te todo, José; fascinado e a tremer enrolavas-te nos poderosos e
dóceis braços da tua avó.
Um dia deixaste tudo isto, partiste pelo mundo fora. Acreditavas agora na
liberdade dos homens. No brilho das revoluções. Tinhas lido muita poesia e
Filosofia, José. Baudelaire e Rimbaud, Jesus e Buda, Lenine, Engels e Marx
eram os teus heróis.
“O mundo não deve ser interpretado, o mundo deve ser transformado!“
O coração pulsava-te nas mãos. Trazias na testa a ciência da juventude. Amaste,
odiaste, percorreste todos os becos do mundo, conheceste toda a podridão humana.
Mas acreditavas na terra prometida. Ah a terra promessa!
84 anos, José. 84 anos às voltas... diante das tuas pálpebras cansadas de tanta
hipocrisia, sempre e ainda uma imensa terra verdejante: os campos bem cultivados,
o leite e o mel correndo, os bois, a charrua, os rebanhos descansando na sombra,
junto ao ribeiro, a fresca água correndo por entre os dedos de crianças sorridentes,
os canaviais, os olivais, os vinhedos, o vinho fervendo nas ânforas...
Eis a terra por que tanto sonhaste, José! Ei-la, finalmente, aqui e agora, diante
dos teus olhos enrugados e cansados, incapazes de distinguirem já o voo das aves.
Eis como a terra se abre, luminosa, de par em par, qual um grande portal para
te receber. Mas os músculos já não te obedecem, José. Já só um adeus te resta,
um evoé à terra que só em sonhos habitaste.
Luís Costa, Züschen 2008