:::::::::::::::::::::LUÍS COSTA::::::::::::
PEQUENA REFLEXÃO A PARTIR DA MINHA POESIA

Raro é o dia que passe sem que escreva um poema. Escrever tornou-se para mim um modo de estar na vida, um modo mesmo de existir. Se a memória não me falha, penso que que já o disse algures, que ela (a poesia) é para mim uma necessidade ontológica. Poesia e existência são, no meu caso, inextricáveis: poeta e homem são uma e a mesma coisa, o poeta não tem biografia, a obra é a sua biografia, por isso vejo a poesia como uma missão.

Tal como para Karl Krolow, um dos grandes poetas alemães do pós-guerra: a poesia é a minha “tägliche Buchung “ (escrituração diária). É nela e através dela que vou crescendo...

Embora em grande parte dos meus poemas se denote uma certa forma, quase um certo rigor, o que poderá, deste modo, levar o leitor a pensar que eles são o produto de uma reflexão apurada, ou premeditada, a verdade é que durante a sua “ fabricação “ isso não acontece.

As palavras formam-se dentro de mim como relâmpagos, são verdadeiras esplosões, das mais variadas cores, vindas não sei de onde. E assim tornam-se fenómeno no espaço e no tempo, e assim povoam a folha até ali em branco. É um mistério, é, de todas as vezes, um acto misterioso, diria quase demoníaco, insondável como a própria existência.

Isto não quer, porém, dizer que não goste de reflectir sobre o fenómeno poético. Bem pelo contrário, penso que a reflexão é muito importante. Deve mesmo acompanhar a produção poética. O que no meu caso tem acontecido. Pois só assim, este é o meu modo de ver, o poeta se pode ir desenvolvendo como poeta (pois que ser-se poeta é sempre um processo inacabado), ou como num pequeno email o poeta/pintor Nicolau Saião me dizia “acendendo pequenos lumes.“ Porém, há que distinguir entre reflexão poética e o acto poético em si.

Os meus poemas são, e neste aspecto quase os poderia chamar sobre-realistas, termo muito usado por David – Mourão Ferreira e que muito me agrada, (embora não goste de rótulos), sempre o produto de um instante inominável, do lado mágico que existe em todas as coisas, sejam elas pequenas ou grandes (tanto podemos encontrar poesia num grão de areia, como no sorriso de uma Vénus, como na pele de um lagarto etc. A poesia está sempre presente e em todo o lado.) Quer dizer, eles desabrocham em mim quase como por encanto. Posso mesmo afirmar, que, de todas as vezes que acabo da escrever um poema, me encontro de boca aberta e exclamo extasiado: terei sido eu quem escreveu isto?! É de todas as vezes um acto de admiração e surpresa: sinto-me de todas as vezes como aquela criança que segura um búzio na mão ou vê pela primeira vez o mar. É um verdadeiro milagre.

Pela minha parte penso que ser poeta é isso mesmo, é ver o mundo com olhos de criança, é encontrarmo-nos aqui e agora, é sermos capazes de, de todas as vezes, nos maravilharmos com tudo quanto nos rodeia.

No entanto encontro-me sempre aberto a todos os estilos poéticos, estou sempre pronto para receber em mim a influência dos estilos poéticos mais diversos. O poeta deve ser um ser totalmente aberto, um imenso cálix, o símbolo da liberdade total. O poeta mão é um, mas antes, ele é todos. Ele deve comungar da sabedoria universal, sabedoria que lhe é dada directamente, sem mediações, pela intuição; ele deve absorver em si o mundo e tudo quanto o tenha influenciado. Ele deve funcionar como uma máquina transformadora. A metamorfose deve ser o seu campo de acção.

A poesia não se mede, quanto a mim, por estilos ou escolas.Tanto tenho lido os poetas da Avantgard, expressionistas, surrealistas, pós-modernos etc. com grande amor e fascinação, como os poetas românticos, assim como os poetas clássicos e aqueles que podem ser considerados de um estilo mais clássico ou realista. A verdadeira e boa poesia transcende sempre todos o géneros , estilos e escolas, a verdadeira poesia fala de tudo e de todos, nunca nega nada, fala de todas as maneiras e feitios. Ela tanto faz parte dos povos mais cultos, como dos mais primitivos. A sua potência criadora assenta na sua pluralidade e na sua trans-nacionalidade, ela não conhece cores nem fronteiras, ela é a personificação da mais alta e plena liberdade. E por isso o poeta torna-se o destruidor de todas as normas e fronteiras. Visto que, como a Florbela Espanca canta:

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
( 1 )

Como já um pouco mais atrás dei a entender, no meu caso, poesia e instante são, praticamente, uma e a mesma coisa. Visualizando esta afirmação poderíamos comparar isto a uma circunferência em que o centro e a periferia, embora parecendo separados, não o são, visto que jamais seria possível a existência de um sem o outro. Centro e periferia complementam-se, tornam-se um.E não será exactamente isso o que toda poesia procura? A unidade primeira, o homem radicado no cosmos e na natureza. O centro e a periferia.

A poesia é assim uma verdadeira radicação na vida. Uma religação: dentro dela a carne e o espírito,o lado telúrico e o lado cósmico completam-se, isto é, encontram-se em plena sincronia.

O verdadeiro poeta não necessita de devotos e muito menos de coroas de louro, ou prémios literários, nisto Herberto Helder é um verdadeiro exemplo, o verdadeiro poeta é um devoto da poesia, a sua existência e a sua poesia são uma e a mesma coisa e por isso ele é o súbdito da palavra e ao mesmo tempo o seu libertador, o mundo explodindo em cada grão de areia.

Contudo parece-nos que muitos poetas de hoje cultivam o desejo de chegarem ao panteão dos deuses, querendo assim usufruir de fama e imortalidade literária, não se apercebendo, porém, que a descida aos precipícios é o seu verdadeiro caminho, que é exactamente aí que devem criar raízes.Mas como já Cristo dizia, assim também eu digo: a César o que é de César.

No entanto, pela minha parte, tal como o Helder, isto sem imitações, pois nunca gostei de me comparar, nem imitar ninguém, jamais aceitaria um prémio literário.

A magia da palavra poética, a sua potência devastadora, alberga em si o poder de anular todas as dicotomias que o homem no seu pequeno dia-a -dia pecuniário e hedonista vai inventando.

Por isso ser-se um verdadeiro poeta é sempre ser-se algo mais … é ser mais alto, é ser maior do que os homens! O verdadeiro poeta é mesmo capaz de vencer a própria morte. Vencer a própria morte? Não será isto um exagero da minha parte? Estarei louco? Não, caro leitor, acredita-me que não o é, e que nem estou louco.

Na verdadeira poesia, de facto, a morte não existe e como tal não podem existir poetas mortos: aqui morte e vida são sempre partes do mesmo anel. E se é verdade que, como exemplo, Camões, Pessoa, ou Homero, enquanto existentes, morreram, o poeta, esse, continua bem vivo na sua obra. Ou seja, por meio de cada nova leitura que façamos dessa obra, ele transcende o tempo histórico em que, como homem, viveu e morreu, e assim encontra-se presente, por isso bem vivo, perante os nossos olhos.

Como o mesmo Karl Krolow, que já no início desta reflexão citei, também eu sou da ideia que um poema ou calha logo à primeira, ou não calha mesmo (No entanto também aqui, e no meu caso, há excepções à regra.). Por isso gosto de chamar a minha poesia: poesia do instante - em que o tudo é nada e o nada é tudo. Pois a poesia é isso mesmo: a voz do nada.A voz do silêncio das coisas. O grande milagre. A Voz absoluta que unifica em si o todo, abolindo e assim os contrários, o regresso às origens. Pois que:

Por encontrarte, dejar
de vivir en ti, y en mí,
y en los otros.
Vivir ya detrás de todo,
al otro lado de todo
- por encontrarte -,
como se fuese morir
( 2 )  

 Luís Costa, Züschen MMVIII

Notas

( 1 ) Do soneto – Ser Poeta
( 2 ) in: pedro Salinas, " Gedichte - Poemas" , seite 10, Erste Auflage 1990, Bibliothek Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1990

Luís Costa nasce a 17 de Abril de 1964 em Carregal do Sal, distrito de Viseu. É aí que passa a maior parte da sua juventude. Com a idade de 7 anos tem o seu primeiro contacto com a poesia, por meio de  Antero de quental, poeta/ filósofo, pelo qual nutre um amor de irmão espiritual. A partir dai não mais parou de escrever.

Depois de passar três anos  num internato católico, em Viseu, desencantado com a vida e com o sistema de ensino, resolve abandonar o liceu. No entanto nunca abandona o estudo.  Aprende autodidacticamente o Alemão, aprofunda os seus conhecimentos de Francês, bem como alguns princípios da língua latina. Lê, lê sem descanso: os surrealistas, a Geração de 27, Mário de Sá-Carneiro, Beckett, E. M. Cioran, Krolow, Homero, Goethe, Hölderlin, Schiller, Cesariny, Kafke e por aí adiante. Dedica-se também, ferverosamente, ao estudo da filosofia, mas uma filosofia viva. Lê os clássicos, mas ama, sobretudo, o poeta/ filósofo Nietzsche, o qual lera pela primeira vez com a idade de 16 anos : "A Origem da Tragédia" e o existencialista Karl Jaspers.

Mais tarde abandona Portugal rumo à Alemanha, pais onde se encontra hoje radicado.