:::::::::::::::::::::LUÍS COSTA::::::::::::
O LIVRO EXUMADO
(XLIV POEMAS) - Index
No mercado

 Compro um ramo de anémonas para ti, em Nínive, no antigo mercado.
A tua morte habita entre os homens, em seus corações cansados...
É um sobretudo já roto e gordorento como o de Gogol.
  Porém no meu coração tu ainda existes,
Ainda perfeito existes como no tempo em que atravessava os desertos
e a tua sombra era um camelo a meu lado...
 Mas os tempos mudaram-se.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...
 O céu flutua pelo espaço, um espantalho aos bocados.
As ruas lembram um galinheiro, uma tromba de água, uma grande roda
furada, chiando, cheirando a borracha queimada.
  Deambulo pelo antigo mercado de Nínive com um ramo de anémonas
na mão.
Procuro uma luz em pleno dia, uma janela, uma porta visível. A sombra
dos hieróglifos. A destreza da escrita cuneiforme.
  Ah! o sol dos frutos. A hortaliça. Os legumes. A carne ainda em sangue.
O peixe fresco, uma lâmpada. As guelras arfando, querendo inspirar todo
o mundo. O último pasmo da vida.
 E bocas escancaradas falando línguas estranhas: o mau hálito da
pecúnia, o redemoinho das moscas querendo rasgar a breve película
existente entre mim e o mundo. A minha armadura...
  Não! Não quero nada! Não quero mais nada!
Só quero proteger as minhas anémonas, ainda frescas, ainda bêbedas de
luz e seiva, como a recordação de ti, de longínquos dias, intactos,
junto ao rio, e crianças correndo às gargalhadas.