:::::::::::::::::::::LUÍS COSTA::::::::::::
 
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A POESIA

       Contra el silencio y el bullicio invento la Palabra,
 libertad que se inventa y me inventa cada día 
Octavio Paz

                                                            1

A poesia é, antes de tudo, uma forma de estar no mundo, diria mesmo de existir, o pão nosso de cada dia, luminosidade e transparência.. O homem jamais poderá existir sem ela, embora possa pensar o contrário. No princípio de tudo está sempre o verbo e o sonho poético. ~

A poesia é, sobretudo, um sentimento inexplicável, alegria de estar presente, comunhão cósmica, a palavra na palavra, a palavra-silêncio, a voz do deserto, voz no deserto,  um método de libertação interior, e por isso abertura ao Ser. Ela revela ao homem a sua condição humana.  Sim, ela é revelação e é, igualmente, o cordão umbilical que liga o homem ao cosmos, à terra, aos animais e aos outros homens. Ela repõe o tempo original, o tempo no tempo. Além disso, ela é também uma forma de revolta, de não-aceitação de um mundo cada vez mais bárbaro, mais mecanizado, mais egoísta, mais hipócrita, mais materialista, mais voltado para um consumismo e interesses materiais desregrados, em que os valores humanistas e o respeito pela natureza estão em total decadência. Isto não quer, porém, dizer que ela seja partidária ou ideológica, ou mesmo moralista, bem pelo contrário, ela é amoral, ela é uma revolta constante contra todo o género de partidarismos, dogmatismos,ideologias e hipocrisias de bons moralistas. A sua divisa consiste em cantar tudo quanto existe, quer dizer, a pluralidade. Pois é exactamente na pluralidade que reside a base de toda a existência, ou seja, a sua unidade, pois não é verdade que não há um sem dois e igualmente dois sem um ? Sendo assim, ela jamais poderá ser partidarista ou defender uma determinada ideologia.

A poesia é um bem inerente dos homens de todos os tempos, de todas as classes e de todas as raças. Por isso, ela é cada vez mais necessária, pois que é uma luta pela humanização do homem, pelo encontro do homem consigo mesmo e assim com os outros.

Por meio da sua potência mágica e miraculosa todas as dicotomias se desvanecem. Aqui, neste fabuloso universo, todas as alianças se renovam, todas as taças transbordam de vinho novo -  Diónisos emerge do fundo dos precipícios e o homem descobre-se na sua nudez elementar; e, livre de todos os egoísmos e narcisismos, ele canta a dor e a alegria do mundo e assim a morte é abolida, pois que morte e vida são agora partes iguais do mesmo anel: Lázaro ergue-se da sua sepultura e caminha, Édipo recupera a visão, Caim repurifica-se e encontra, finalmente, a paz  há tanto tempo almejada.

É o encontro total do homem com o homem dentro de si mesmo; ele assume-se a si mesmo, ele torna-se livre, ele é ao mesmo tempo culpado e vítima, e assim encontra-se plenamente radicado no cosmos e no mundo. E por isso o poeta  canta:

Aqui estou -
escapando-me ao meu antepassado
como o perfume de uma rosa murcha,
eu assumo-me , eu multiplico-me,
como a abelha fabrico os meus favos
(... )

e ainda:

o exterior não é o meu lar,
o interior é-me apertado,
perfume de uma rosa murcha,
eu escapo-me ao antepassado,
eu não quero nomear
eu quero o seu homónimo da luz
eu não me quero ligar
eu quero o seu sinónimo do vento ( 1)

A poesia é, de facto, uma mais valia para o homem,  ponto de saída e chegada, lado exterior e interior, liberdade total, por isso homónimo da luz, sinónimo do vento, domínio do ser, partida e regresso à  terra natal. Ela transcende e absorve a religião, a ciência, a filosofia e a política, ela é o maná, a tenda em pleno deserto, o abrigo na idade da noite, a voz na voz, as asas do gavião sobre o abismo, ela ainda tem a capacidade de mostrar aos homens:

“as leves imagens da aparência
 retirar aos homens a possibilidade de se distraírem.” (2 )

                                                       
 2


Karl Krolow, um dos grandes poetas alemães do século XX, dizia que o que o levou a enveredar pela poesia foi o gosto pela aventura e afirma mesmo que é na  poesia lírica,  mais do que em qualquer outro género literário, que se  pode encontrar um verdadeiro filão de aventuras.

A palavra aventura tem aqui, é claro, um sentido muito profundo, diria mesmo ontológico.

Ao falar de aventura , Krolow vê a potencialidade, mais forte na poesia do que em qualquer outro lugar, da transfiguração e metamorfose da palavra . Pois a palavra é aqui ela própria uma aventura em plena liberdade metafísica. E o que interessa não é a palavra, em si mesma, mas sim a sua capacidade transformadora e libertadora; a sua capacidade de múltipla-metamorfose, a sua combustão verbal que nasce da fonte de onde a toda a criacão irradia.

Esta aventura é a aventura do amor incondicional e violento do homem pela língua. Pois ele, como um destemido explorador arroja-se até aos limites da linguagem do dia a dia. Ele detona esses limites. A detonação da linguagem

traz consigo a  invenção de novas relações insólitas entre as palavras, a invenção de novas relações entre palavra  e objecto dentro ou fora dele. É , sobretudo, a tentativa de captar aquilo que não é racionalmente possível, visto que a poesia, sobretudo a lírica,  representa uma forma de violação;  ela procura obrigar a língua a dizer aquilo que a prosa usual jamais será  capaz de exprimir ( 3 ),

ou seja, ela começa onde a linguagem da  prosa atinge os seus limites.

Esta aventura poética é a aventura do homem quando o homem não se nega a si mesmo, quando frente ao nada se projecta para além das suas fronteiras, rumo ao absoluto, destruindo as quimeras do ter e todas suas horríveis armadilhas.

Esta aventura é a própria vida, o amor pela vida, seja qual for a sua forma. Nela o homem descobre a sua verdadeira condição que é a do movimento incessante, da perpétua procura, da constante e perpétua transformação, da entrega total, da imolação. Ou seja, esta aventura é a aventura do Ser. Pois Ser implica sempre mudança e transformação, renovada encarnação, entrega total, subida e descida em vertical e em espiral. Por isso podemos dizer que a linguagem poética é uma linguagem viva, ou antes, uma linguagem em processo.

A força e a magia da poesia residem exactamente nesse processo, no movimento, na  passagem de uma palavra para a outra, nas cordas, no momento explodindo, eternizando-se, no ritmo alucinante e intenso que ligam uma palavra à outra, na sua magia interior ou anterior, no portentoso e mágico silêncio do entre linhas , pois que :

Quem se encontra entre linhas
Vive no outro tempo
Aí nunca é demasiado tarde
Para uma curta eternidade ( 4 )

Dentro do poema, entre linhas, o homem encontra-se consigo mesmo e com os outros, este é o lugar

da reconciliação maravilhosa em que o homem, o mundo e os outros se acham integrados  na plenitude do Ser. ( 5 )

Ou seja, o outro tempo que o homem, na sua labuta do dia dia, no seu egoísmo desenraizado, na sua ambição desmedida, na sua fome de conquista e poder, isto é,  na sua falta de consonância com a vida,  tende a esquecer e menosprezar.

Entre linhas a  palavra poética abre caminhos onde o puro racionalismo, o racionalismo sem capacidade de imaginação e sem capacidade de sonho, é obrigado a depor as suas armas. A palavra poética  ainda crê no homem, na sua capacidade de metamorfose criadora.

Entre linhas a palavra poética é independente e auto-criadora, é um movimento constante e transcendente-presente que se dispersa em todas as direcções, que salva o mundo e o homem da petrificação do ter, que os une por meio da combustão verbal, por meio da sua criatividade solar e que restabelece, assim , o homem no mundo e no universo. 

Tal como o Ser, a palavra constrói-se, autodestrói-se e transfigura-se para que o ímpeto criador nunca  se esgote: uma palavra gera outra e outra e outra e por aí à frente.

Por isso o poema é sempre uma nova linguagem, uma linguagem inesgotável,  uma linguagem que nos fala para lá da linguagem. Esta linguagem encontra-se muito próxima do silêncio, silêncio dos grandes e puros desertos, visto que ela nos fala, antes de tudo,  para além dos sentidos, aqui significado e significante são uma e a mesma coisa.

Diz-nos o poeta José Ángel Valente que:

a palavra poética, quando ela realmente se nos  revela e nós realmente a recebemos, convida-nos a entrar no território da mais extrema interioridade. Lugar do Não-lugar, caverna, matrix, materia mater, matéria da memória, material da memória. ( 6 )

Assim, no interior do poema,  a palavra repõe a aliança entre a presença e a ausência , entre o exterior e o interior, entre o sujeito e o objecto, o poema é o lugar da absoluta interioridade, interior intimo meo, como se pode ler nas Confessiones de Agostinho, ou seja, encontramo-nos no mundo das essências, na casa do próprio Ser, da presença absoluta.

Deste modo é-nos permitido dizer que  a poesia lírica, sobretudo a moderna, não está centrada num determinado tema. A palavra, a sua capacidade de permanente autocriação e recriação é o centro, portanto, o tema . Aqui a palavra, ou seja,

o verbo é o senhor absoluto: as forças condutoras do poema já não obedecem às relações gramaticais, mas condensam em si as múltiplas virtualidades significativas. ( 7 )

Esta poesia pode ser, sim, interpretável, mas a sua condição primeira, a sua finalidade, se é que ela tem uma finalidade no sentido usual do termo, não está centrada na interpretação, mas sim na capacidade de o leitor conseguir povoar o universo das suas  múltiplas virtualidades significativas. Deste modo a linguagem despe-se de toda a sua natureza usurária ou funcional do dia- a- dia, obrigando o leitor  a entregar-se de peito aberto ao poema - o poema  é, deste modo, partilha e participação. Agora sim, agora o leitor estará apto a encontrar nesse poema não uma falsa interpretação, mas sim a sua própria voz, a voz do uno primordial que existe no fundo de todos os homens ( e também em tudo quanto existe ), que é o seu fundamento e que por isso os liga entre si.

Ao acontecer isto poeta e leitor encontram-se, a partir de agora, ligados, são um e o mesmo, são pontes, leves como éter, desmaterializadas, invadidos pelo êxtase da potência transformadora, que se chama : O MILAGRE DA PALAVRA.
                                                         
                                                         3

A palavra, por mais simples que seja, isto é, no caso de existirem palavras simples e complexas, tem na poesia uma função reveladora. Ela abre ao poeta e assim aos outros homens um espaço cheio de janelas abertas. Cada janela é um mundo que a palavra cria e recria pela mão do poeta.

O poeta como tal não existe. Ele só existe, de facto, durante o momento em que o poema se dá ao mundo. Ou seja ele é, sobretudo, um produto da palavra, que por meio da sua multiplicação e transfiguração cria o poema. Portanto, o poeta funciona aqui como um médium através do qual a palavra se revela ao mundo. Podemos dizer que o poeta é sempre um servidor da poesia e nunca, mas nunca, o seu senhor.

Quando o poeta mergulha nesse espaço fantástico, nesse espaço silencioso, cheio de janelas e janelas abertas, ele, por mais que se prepare, por mais que queira ser senhor das palavras, por mais que queira ter uma perspectiva racional da palavra, jamais conseguirá isso plenamente.

E embora sentado diante da sua escrivaninha conceba o poema dentro de um conceito bem premeditado, dentro de um esquema matemático, de uma determinada formula ou  forma, por exemplo um soneto, a verdade é que as palavras se lhe escapam. Dizendo muitas vezes mais do que aquilo que o poeta talvez pretendesse dizer. Estas palavras, que agora acabou de escrever e a que procurou dar um determinado sentido objectivista, vão, ao encontrar o leitor, receber sempre um novo sentido. Elas são sempre mais do que o que são, pois que elas são portas e janelas abertas sobre as fronteiras do indizível.

Aqui reside exactamente a potência reveladora da palavra poética : a sua capacidade de metamorfose que torna, deste modo, o poema num movimento contínuo, num elevador sem fim, atemporal, um relâmpago na noite dos homens. Pois que ele, com a sua linguagem metafórica, pode dizer-se mesmo, mágica e alquímica, sempre pronta para ser reinventada, embora nascido num determinado momento histórico, e por isso sendo também histórico, liberta-se, no entanto, desse momento, transcende esse momento, isto é, o tempo e o lugar em que foi criado. Pode dizer-se que o poema é uma fonte da juventude, uma linguagem eterna: se é verdade que tanto o poeta como o leitor vão envelhecendo e se é também verdade que o papel e a tinta se vão dessorando, já no que diz respeito ao poema, este, por meio de cada nova leitura, por meio da sua palavra-relâmpago, vai-se rejuvenescendo ao longo dos tempos.

Por isso o poema  diz sempre mais do que diz, diz outra coisa, mesmo quando diz a mesmas coisas que o resto dos homens e da comunidade ( 8 )
e assim liberta-se de todos os escolhos e condicionalismos que aprisionam o homem ao seu tempo. O verdadeiro poema fala aos homens de todas os grupos sociais, de todas as raças e de todos os tempos; o verdadeiro poema é a incarnação de uma liberdade livre, isto é, liberta de todos os condicionalismos humanos, quer dizer,  responsável.

O seu humanismo incondicional e a sua capacidade de se transcender são exactamente os condimentos que lhe dão aquele seu fascínio inigualável; que lhe dão a capacidade de se incendiar renovadamente através dos tempos, que o tornam ambíguo, mágico e hermafrodita; o lugar onde o antigo e o moderno se misturam, onde tudo, tudo quanto existe tem direito igual de existir, onde o que estava cindido se une, onde a liberdade se torna: cuoleur d’homme ( 9 ) e de mulher.

Notas:

(1 ) este poema de Adonis foi traduzido para o português por mim a partir da tradução feita do árabe para o alemão por Jacques Berque, Anne Wade Minkwoski e Jochim Sartorius, e encontra-se no livro „Minima Poetica “, Suhrkampf Taschenbuch, erste Auflage 2003
(2 ) Em “ o espelho de um momento “ poema incluido no livro “ Algumas Palavras “ de  Paul Eluard,
 tradução de António Ramos Rosa e Luíza Neto Jorge, Pulicacões Dom Quixote, Lisboa 1977, 2a edicão
(3 ) Estas palavras de Adonis foram extraídas de uma recensão de Suleman Taufiq, publicada no jornal: Neue Zürcher Zeitung, sobre o livro de Adonis : «Die Gesänge Mihyars des Damaszeners»
 ( 4 ) Karl Krolow, Die Handvoll Sand, no poema: Zwischen den Zeilen,  Insel-Bücherei nr. 1223, erste
Auflage 2001
( 5 ) Em “ Poesia Liberdade livre “, página  210, António Ramos Rosa, Ulmeiro Universidade n. 8, 1a edicão
na Ulmeiro, Maio de 1986.
( 6 ) Do livro “ Minima Poetica “, Suhrkampf Taschenbuch, erste Auflage 2003, no ensaio de José Ángel Valente  “ Vorschlag für eine Annährung an das poetische Wort”,  página 83.
( 7 ) Em “ Poesia Liberdade livre “, página 45 , António Ramos Rosa, Ulmeiro Universidade n. 8, 1a edicão
na Ulmeiro, Maio de 1986.
( 8) ibidem, página 29.
( 9) no poema  “Il n’y a pas a sortir de la “, André Breton

                                                                                

   Luís Costa, Züschen 2008