Entro no teu jardim, entro na tua casa , entro nos teus secretos aposentos,
entro, enorme cobra, cobra negra, cobra negra e cintilante, entro
com Schubert de um lado e o Marquês de Sade do outro, entro
como uma curva em gancho
e os teus segredos iluminam o espaço, os teus segredos...
E sentado ao piano Beethoven improvisa um quarteto,
um quarteto flamejante como o chiar de rodas e pneus queimados,
como violoncelos mal cheirosos, como violinos cheios de teias de aranha
como o guincho da caixa de velocidades quase a gripar.
E os choupos correm através do dia
e o dia descobre a inocência dos campos
e os ramos dos arbustos lambem o alcatrão
e por detrás do velho barracão habitam os peixes- fantasma,
e o céu desce e cresce, cresce e desce e toca o tejadilho do carro
e o espaço cheira a rosas e magnólias, e a terra cheira a incenso nazareno
e Beethoven aproveita o momento para escrever uma nova sinfonia,
talvez a décima, talvez a décima e meia, talvez a décima e segunda
ou uma daqueles que lançam fogo aos altares dos templos
de um modo tão barbárico que lembram o flagelo de Deus
e só deixam ruínas e pedaços de madeira triturada aqui e ali
E o céu desaparece e reaparece, desta vez por entre os troncos
das faias, por entre ilustres carvalhos, por entre urtigas suculentas...
E uma chuva benigna cai das asas das borboletas e os anjos
Espreitam por entre nuvens, por entre rios, por entre falsas gateiras
e os homens dão graças a Deus por cada novo dia e por cada nova noite :
Louvai ao senhor, porque ele é bom, porque a sua benignidade é para sempre.
Digam-no os remidos do Senhor, os que remiu da mão do inimigo. *
Sim, louvai o senhor, louvai o senhor, ele é o nosso pai, louvai o senhor...
E lembro-me de Schiller, e lembro-me de Goethe, e lembro-me de Tranströmer,
E lembro-me das palavras secretas, das palavras não ditas, das palavras nunca
ditas, das palavras pecaminosas, das palavras interditas...
até que acordo, acordo com um sabor de jornal queimado na boca, acordo;
e estendida ao meu lado, tu, Maria Madalena , dormes um sono profundo
um sono tão profundo como a voz do oceano na noite abismal,
e o teu corpo, desnudo, rosado e ungido, Madalena, é uma maçã sumarenta
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