I
Ouvi falar pela primeira vez de Sebastião Alba no Jornal de Letras. Não me recordo agora qual o número desse jornal, mas sei que foi em 2000. Um artigo anunciava a sua morte recente ( fora atropelado mortalmente por um carro ) e falava um pouco sobre o poeta e a sua vida.
Fiquei imediatamente fascinado com aquele homem que optara por uma vida de mendigo ou cigano, libertando-se de todos os laços sociais e fazendo da poesia a seu pão de cada dia, tal como Rimbaud, embora ao contrário deste, nunca abandonando a escrita. Pois, como Maria de Santa Cruz escreve no seu prefácio “ Prelúdio e Advertência “ ao livro “Albas “:
Sebastião Alba “ lajeando as sílabas, como romeiro seguia pensando um poema novo, corrigindo os que “ salvara “ na memória durante anos, rasurando ou eliminando, em sucessivas versões. E, ao chegar a uma casa mais amiga , a primeira coisa que pedia era papel e “ pena – como ele continuava a dizer, apreciando-lhes a qualidade - para fixar o que os caminhos ínvios lhe haviam ditado em troca da solidão por que optara. “
Sebastião Alba era um ser materialmente desprendido. Em 1997 é-lhe atribuído o prémio de poesia ITF. O dinheiro do prémio, 1500 contos, e os direitos de autor pelos livros editados tiveram o memo fim: as duas filhas.
Quando li que Sebastião Alba havia vivido em Braga e que por aí andou, anos e anos, deambulando pelas ruas e paragens de autocarro, dormindo ao relento ou no alpendre de uma igreja, pensei que talvez algum dia, causalmente, me tivesse cruzado com ele. Pois na altura do Verão costumava visitar assiduamente Braga. No entanto, quando vi a sua fotografia, não fui capaz de me recordar que algum dia tivesse visto aquele homem algures. Ou talvez o tenha visto encostado a uma esquina numa rua qualquer, com uma garrafa na mão, ou dobrado sobre si próprio, ou a tocar harmónica, e até tenha olhado para ele, quem sabe. Mas seja como for, de entre todos os mendigos que em Braga, ao longo dos anos, eu tenha visto, a minha memória não o consegue distinguir. O que é pena. Pois gostaria de facto de o ter conhecido, e de termos bebido uma cerveja juntos .
Pouco tempo depois de ter lido a notícia da sua morte, cheio de curiosidade, comprei o livro a “Noite Divida “que a Assírio&Alvim, em 1996, havia publicado . Desde então, tornei-me num admirador deste poeta “ à margem “ e da sua poesia. E concordo plenamente com José Craveirinha quando este o qualifica como “ um dos grandiosos deuses humildes da palavra. “ |
II
S ebastião Alba é um poeta da entrega total. Um poeta da liberdade total e dos limites do ser. Tal como o homem, que por opção, se tornou num romeiro ou Manuch ( homem livre ) , liberto de todas as corrente sociais, também o poeta assim o fez. Incondicionalmente ele entrega-se à palavra poética. É um poeta vertical, um poeta de carne e osso. E com um talento fora do comum vai transformando as palavras do dia-a-dia numa linguagem única dentro do panorama da literatura portuguesa. Ou antes da Lusofonia. Visto que Sebastião Alba também é considerado um poeta da negritude e de Moçambique. No entanto é, sobretudo, um poeta da pátria: língua portuguesa.
Em 1996, a Editora Assírio&Alvim publica, por iniciativa de Herberto Hélder, o que quer dizer muito, “ A Noite Dividida,” que tenta recuperar o conjunto da sua obra poética, embora incompleta.
A arte poética evidenciada nesta antologia que reúne os livros: “ O Ritmo do Presságio “, “ A Noite Dividida “ e o “ Limite Diáfano “, coloca Sebastião Alba numa posição cimeira da poesia portuguesa. no entanto, ele continua, até hoje, a ser um poeta marginal, ou, como muitos gostam de dizer, um poeta menor.
Segundo o poeta Rui Knopfli “ o verbo de Sebastião Alba é um apanágio de muitos poucos poetas. “ ( 1 ) Por sua vez José Craveirinha diz que sebastião usa “a riqueza das palavras como um utensílio precioso mas não artigo de luxo, Sebastião Alba faz uma poesia luxuriante de ternura. “ (2 ) É que a poesia é para ele o mesmo que respirar. Por isso a poesia de Sebastião Alba pode ser considerada uma arte dentro da própria arte. O acto poético tem na sua poesia um valor religioso e sacral, porquanto
Quendo escreve descalça-se
à entrada do poema
encurvado cisma, inala
o flato dos fiéis.
Para além disto o poema também tem um efeito curador e apaziguador pois “ com o verso insto , instalo o clima, / amenizando o da região.
Ao longo de toda a obra poética de Sebastião Alba deparamos com uma linguagem por um lado sóbria, lúcida e decantada, por outro carregada de uma tensão interior, nuclear, mágica e nocturna da qual jorram :
as palavras de ponta e mola
que anavalham
as roçagantes capas
de velhos mestres.
É exactamente nesta dualidade entre o poema construído a partir de uma forma sóbria, quase mediterrânica, diáfana, que lhe é inerente, e o impulso inicial ou musical que está na sua origem , o ritmo “das palavras de ponta e mola”, que pretende deixar para trás “ os velhos mestres” ( encontramo-nos perante uma linguagem original, nova ) ,destruir todas as barreiras que condicionam o individuo, que reside, precisamente, a originalidade da poesia de Sebastião Alba. E é também exactamente esta dualidade que a identifica como uma poesia da unidade do ser.
Ao longo dos seus poemas vamos encontrando muitas passagens que testemunham isto.
Vejamos, como exemplo, o poema o ritmo do presságio:
A tinta das canetas
Reflui de antipatia
E impregnadas, assíduas
Cambam as borrachas
Não há fita de máquina
Que o uso não esmague
O vaivém não ameace
De dessorar os textos
Mas a grafia nada diz
De pauses na cabeça
Vozes inarticuladas
Adensam, durante elas
Uma tempestade
Recôndita
E nubladas carregam-se
As suspensões
Encandeando em nós
O ritmo do presságio
Este poema fala-nos da constante tensão entre o ritmo do presságio, o ímpeto primeiro que nos leva a escrever poesia e o acto ou processo de a escrever, ou seja de dar uma forma a esse ímpeto interior. O poema, depois de realizado, já nada nos diz de pausas na cabeça e vozes desarticuladas, nem da sua tensão inicial. Ele é agora uma unidade, unidade essa nascida da luta entre o ritmo primeiro, o caos nubloso, e a forma que no caso de Sebastião é de um estilo sóbrio mas simultaneamente natural.
E é precisamente esta naturalidade da forma e o carácter explosivo da sua intensidade interior, própria daqueles que amam os abismos, que tornam a poesia de Alba tão fascinante.
Tal como Herberto Helder também Alba tem por hábito de reflectir sobre a poesia dentro do próprio poema.( Isto é o resultado da sua face lúcida. ) Em muitos dos seus poemas encontramos essa tendência para a metapoética. Segundo esta metapoética, a poesia nasce sempre da dicotomia entre o eu e o eu, ou seja o mistério ou o obscuro limbo que separa e une estes dois eu. O poeta e o sujeito que escreve, o poeta e o mundo que o rodeia.O poema é para o poeta o resultado da intensidade dessa dialéctica ou disjunção ou seja a anulação de todas as dicotomias entre o eu e o eu e entre o eu e o outro :
As coisas são a sua morada
E há entre mim e mim um escuro limbo
Mas é nessa disjuncão o istmo da poesia
Com suas grutas sinfónicas
O mar.
Num outro poema igualmente de índole metapoética, podemos ler os seguintes versos:
Como os deuses
descreio da inpiração.
Há entre mim e a voz
um convívio silente.
Embora descrendo da inspiração o poeta não necessita de máscaras, visto que entre ele e a poesia há um convívio que ultrapassa todos os subjectivismos inerentes a essa inspiração.
Esta pureza primária torna o poeta numa espécie de Che Guevara da linguagem, que vai libertando as palavras das prisões do dia- a- dia e de todos os seus conteúdos pejorativos. Ele purifica-se e é ao mesmo tempo um purificador das palavras.
Por isso, toda e qualquer exegese destes poemas „não será mais do que restringir-lhe a poesia se tentarmos situá-la nos calabouços dos clássicos lugares-comuns de como a poesia é; como a poesia deve ou deveria de ser, ou como a poesia não é.” ( 3 )
Longe de todos os intelectualismos pessoanos, o poeta não se liga às coisas por meio de máscaras, ou profundas reflexões estéticas, mas sim por um processo de ligação cósmica.
O silêncio anterior ou musical, ainda antes de qualquer rasgo ou snobismo intelectual, ou de inspiração, é que o leva a poetar. As palavras buscam, aqui, libertas de toda a exegese, a sua essência, ou seja, o silêncio:
Plavras só as mais altas, digo,
As que põem ao teu alcance o silêncio.
Máscara e homem são dois lados da mesma moeda. Sem uma não poderia existir a outro. E por isso mesmo, no universo poético, não existem individualmente, são uma pura invenção do intelectual. O silêncio é a base do poema, a unidade dos dois lados. Dentro dele a máscara e o eu subjectivo são anulados ou antes transfigurados num corpo cósmico. O poeta tem aqui uma função sacerdotal : ele é o portador das palavras, que antes foram um silêncio músical. estas palavras que agora escreve são e não são a sua voz. Por isso a sua voz é uma voz sempre clara e objectiva.
Como se se encontrasse num estado de transe ou inconsciente, ele fala por si, em nome da comunidade e em nome de todos: animais, homens, rios, deuses, árvores etc. Pois a linguagem do silêncio, linguagem , por excelência, poética é universal. Tal como no surrealismo esta poética encontra-se muito perto do delírio e assim liberta de quaisquer preconceitos ideológicos ou estéticos. Encontramo-nos no universo surrealizante da pureza inicial em que a forma e o ritmo musical se constituem mutuamente :
Foi assim
Todo o mar que eu via
Se precipitou logo no meu coração
Que é de sal
E os peixes cristalizaram
Com olhos mortos
Para as suas manhãs refractadas
Escutando bem
Ao pé das estátuas
Música de uma fanada melancolia
A poesia é neste caso o encontro com a totalidade genesíaca, o princípio musical das coisas. Há nela , como em toda a verdadeira poesia algo de primitivo e arcaico. É a revolta do romero ( ser ) contra uma sociedade sedentária consumista sob a ditadura do ter. Aqui só a a liberdade conta. A liberdade do homem e das palavras E por isso, como José Craveirinha bem nota:
“ Sebastião faz as palavras não terem outra pátria que não seja o país sem fronteiras do poema. “ ( 4 )
e por isso também todas as palavras são bem vindas, mesmo os clichés:
Deixa entrar no poema
Alguns clichés.
Submetidos à experiência inefável,
Sua carga ( eléctrica ? )
Escoar-se-á.
Contudo para Sebastião Alba “ a poesia não é só o domínio da língua, até porque ela é indominável “ ( 5 ) , ela é uma verdadeira voz humanista, que ultrapassa todas as barreiras étnicas religiosas e sociais. Ela é cósmica e global, ela é a “ ternura pelos mais fracos : as crianças, as mulheres ( tão vulneráveis ), os velhos já senis. E os pobres animais bravios. “
( 6 ) Neste universo o poeta afirma-se livre, só súbdito do Ser, ele comunga da unidade cósmica, e descobre, deste modo, a sua capacidade de vidente:
Súbdito só de quem não reina,
aqui louvo os animais.
Há entre mim e eles, uma funda
relação de videntes:
as paisagens que fendem
e a minha, sepulta,
perfazem um mesmo habitat.
Esta poesia funciona como uma aliança purificadora. Pois que ela recebe todos em seu templo. Ela é o domínio da igualdade e da liberdade total. Ela é a voz da revolta contra um mundo cada vez mais fútil e decadente, onde o negócio lucrativo se vai apoderando dos templos dos deuses e de tudo quanto nos era sagrado. Ela limpa os templos de toda a sua sujidade e repõe, assim, o lado sagrado das coisas. Ela é, acima de tudo, a voz do romeiro ou Manuch. A voz do homem livre, para além de bem e mal que“ assumiu a condição de ser despojado e desprendido, própria dos espirítos que se dão à arte o mesmo é dizer à humanidade , sem esperar outro retorno que não seja de ordem espiritual. “ ( 7 ) Voz essa que só pode ter como sua pátria a própria poesia:
Deito-me na rede atada
Aos pináculos do fuso horário.
Tivessem meus dias um dono
ao alcance da voz
que por mim cora; sem pejo
o adularia.
Este o sulco em minha mão
que enruga a testa das ciganas:
não vai mais longe o seu cavalo cego ( 8 )
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