Abro o livro do poeta Sebastião Alba: " Albas " e sob o título “ Tosca “ leio:
“ A música é a única arte que nos causa uma profunda inquietude : donde vem aquilo?
A técnica nada explica .“ ( 2 )
Penso naquelas palavras, vejo-as acenderem-se à minha frente, explosivas, verdadeiros fogos-de-santelmo nos mastros das caravelas.
Haverá uma resposta...? haverá alguma enciclopédia, algum compêndio de matemática, alguma gramática ou romance que nos consiga explicar donde vem e o que é a música? Schopenhauer diria que a música é o querer cego e instintivo que actua para lá de todo e qualquer racionalismo, causalidade ou princípios morais, perante o qual somos meros títeres impotentes, ou seja, o próprio Ser. Nietzsche concordaria com ele. Mas poderá isso ser provável? Não é tudo isto uma mera adivinhação ou dedução que tanto pode estar certa como errada? ( partindo-se do princípio que haja coisas certas e erradas.) Pois que sabemos nós realmente disso? De facto, há coisas que são inexplicáveis, coisas que nos transcendem, coisas a que não temos acesso, coisas que o experimentalismo científico, e os raciocínios lógicos jamais conseguirão compreender ou alcançar.
Tal como falámos da música, poderemos igualmente falar da nossa própria existência: não é verdade que quando reflectimos sobre ela, ela nos causa, tal como a música, uma profunda inquietude: de onde vimos ? para onde vamos ou que é tudo isto ? Existirá algures um deus? Faremos parte de um plano divino, ou seremos um mero capricho da evolução a la Darwin?
Haverá alguém que consiga compreender o sentido da existência? haverá alguma ciência ou filosofia que a consiga explicar racionalmente ? E será a nossa língua do dia a dia capaz de nos dar uma imagem aproximada dela ? Não seremos antes obrigados a dizer sobre ela o mesmo que o Meister Eckardt diz, referindo-se a Deus ?
- “Deus é uma língua sem língua, uma palavra sem palavra. “ ( 3 )
Porém não temos perdido a coragem: desde há pelo menos dois mil e quinhentos anos que já andamos nestas andanças, que tentamos compreender-nos e compreender tudo quanto nos rodeia. Quantos pensadores não sacrificaram a sua vida em nome de tão grande e nobre empresa? É que como Schopenhauer bem dizia: o homem é antes de tudo “ animal metaphysicum .“ Não será precisamente esta a nossa grande maldição ?
É verdade que o homem evoluiu e continua a evoluir, é verdade que a sua sapiência o coloca, quase, ao lado dos deuses, por vezes, ou antes, a maior parte das vezes, ele esquece as suas fragilidades e sente-se mesmo igual a um Deus. E se é verdade que não é um Deus, é pelo menos um macaco que brinca com ferramentas próprias dos deuses. E isso torna-o perigoso para si próprio e para tudo quanto o rodeia, torna-o no maior inimigo da existência. Pois, graças ao seu tecnicismo e conquistas materiais ( ter ), ele crê ter tudo sob controlo. Mas quantas vezes não foi ele já traído por essa sua crença ? E será que ele conseguiu , depois de tantos séculos de aventuras, depois de ter cartografado tantos dos mares nunca dantes navegados, encontrar uma resposta clara e convincente para o seu tão “ grande e grave problema “?
Só poderemos aqui responder: claro que não. Claro que não.
Embora a existência seja, à primeira vista, a coisa mais evidente, embora nos chegue a parecer , no dia - a - dia, uma mera banalidade, a coisa mais simples do mundo, ela é, no entanto, a coisa mais inexplicável, ou seja, ela é um mistério, o próprio inexplicável. Nós nem sequer somos capazes de dizer quem somos, nem quando somos. Sim, dizem os filósofos, e também os cientistas: tudo é movimento, tudo se encontra em permanente evolução. Mas será assim ? E quando é que nós ou alguma coisa é dentro desse movimento ou permanente evolução? Será que nos poderemos considerar , dentro desse movimento global, ou cósmico como indivíduos livres ( Seja ele linear, dialéctico ou cíclico ) , capazes de escolher o seu próprio destino?
Fernando Pessoa, em voz baixa, céptico e resignado, responde-nos:
“ não procures nem creias tudo é oculto. “
Os mitos, por sua vez , dizem-nos claramente que não. Lembremo-nos de Sísifo, condenado a carregar , até ao fim dos seus dias, uma enorme pedra às costa, montanha acima montanha abaixo. Lembremo-nos de Édipo que, apesar de todas as peripécias, não consegue fugir ao destino que lhe está reservado e acaba assim por matar o seu pai e desposar a sua própria mãe.
Não! A existência não se pode explicar por ela própria: o mundo da realidade mesmo que seja o único que exista, não contém em si nem a causa nem a sua razão de ser. Ou conterá ?
Haverá quem diga que não existem milagres. Haverá quem diga, talvez, que tal como a religião ( Marx ) também a crença em milagres é um ópio para o povo. Mas afinal o que é um milagre? Um milagre é, nem mais nem menos, um fenómeno que nenhum ramo da ciência consegue explicar, facto inexplicável pelas leis da natureza, ou ainda efeito cuja causa escapa à razão do homem. É a própria insuficiência dos raciocínios lógicos. Concluindo: Ele é tudo aquilo que não é explicável, ou seja o próprio inexplicável. Ora então digam-me: o que é a existência? ( Não será ela precisamente esse inexplicável ? )
Houve ou haverá algum filósofo, antropólogo, matemático ou físico que nos consiga responder a esta questão, sem balbuciar, sem sentir um arrepio correr-lhe pela espinha acima?
Mais uma vez, só poderemos responder que não. E se assim é, então acabamos por concluir que ela é um fenómeno sem explicação possível, ou seja um verdadeiro milagre, ou antes o milagre dos milagres, visto que sem existência, não poderia haver vivência.
Ora é exactamente por isso que o homem deveria respeitar profundamente a existência, a sua própria e a de tudo quanto o rodeia. Aceitá-la, apesar de todo o sofrimento que ela lhe possa trazer, como uma grande dádiva, como um grande segredo. Não terá Sócrates razão quando, olhando para a imensidão do firmamento, exclama: “ só sei que nada sei ?” O que é o homem perante tudo quanto existe à sua volta, senão um grão de areia num deserto? Ou como Rilke nos diz, um “ hausto no nada. Sopro no Deus. Um vento. “ ( 4 ) E é precisamente por isso também que o homem não deveria, como sempre tem acontecido, olhar-se como um existente superior ou como um intérprete do Ser, o que não é nem pode ser verdade. Ele deveria, isso sim, aprender de novo a olhar as estrelas, aprender de novo a espantar-se, aprender de novo a cantar, e assim : “ celebrar, isso mesmo! “ ( 5 ) pois que maior e mais nobre destino lhe poderia ter sido dado do que “ Ser destinado a celebrar... “ ? ( 6 )
Imaginando-se uma hipotética escala cósmica de 1 a 20, que valor teria a existência do homem dentro dessa escala? O homem deveria deixar de ser tão arrogante, tão sério, de dar tanta importância a si próprio e às suas obras. Sim, o melhor que ele poderia fazer era aprender a celebrar, aprender a amar-se e a respeitar-se a si mesmo e a tudo quanto o rodeia: os animais, as flores, as montanhas, os icebergs, os cometas, as estrelas... deveria aprender a ser sincero consigo mesmo, deveria ver-se como uma parte do todo, deveria sobretudo fazer do amor ( um amor que vá para além da divisão tradicional entre masculino e feminino ) e do respeito o grande elo de ligação... redescobrir a sua potência lírica.
E deste modo reconhecer-se como um dos filhos do grande milagre, um filho entre os outros filhos, nem mais nem menos; e talvez entre estes como um irmão mais bem dotado, talvez; mas como tal irmão mais bem dotado ou mais velho que tem pelos seus irmãos mais novos a tutela ( visto que ele traz em si a consciência do Ser ) ele deveria seguir sobretudo o conselho de Heidegger, ou seja, tornar-se no “ pastor do Ser “, ser o bom e respeitador pastor do milagre absoluto.
Agora sim, agora ele estaria apto a evoluir na direcção certa, a evoluir rumo à dimensão poética que o sustenta, rumo às suas raízes - tornar-se voz . E, qual aquele sátiro da mitologia grega que corre pelas florestas, entusiasmado e extasiado como uma criança, então, ele receberia em si, de braços abertos, a paixão e os sofrimentos do Deus. E assim reaprenderia a língua da natureza em toda a sua claridade inaugural, língua existente dentro dele mas já esquecida, língua na língua, palavra na palavra , omnipotência genesíaca, pois que, como o poeta canta:
“Ela é a fonte. Eu posso saber que é a grande fonte em que todos pensaram. Quando no campo se procurava o trevo, ou em silêncio se esperava a noite, ou se ouvia algures na paz da terra o urdir do tempo --- cada um pensava na fonte. Era um manar secreto e pacífico. Uma coisa milagrosa que acontecia ocultamente.” ( 7 )
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1) “ Os Sonetos a Orfeu “, Rainer Maria Rilke, Soneto 3, Trad. de Vasco Graça Moura, Quetzal Editores, Lisboa, 1994
2) Sebastião Alba, “ Albas “, “Tosca “, Edições quasi, Biblioteca “ Primeiras Pessoas “ – Vol. 2, 1. a Edição, Outubro 2003
3) “ Meister Eckhart und das Sein “ , “ Über den Richtigen Umgang mit der Transzendenz “, http://www.helmut-hille.de/eckhardt.html
4) “ Os Sonetos a Orfeu “, Rainer Maria Rilke , “Soneto 3 “, Trad. de Vasco Graça Moura, Quetzal Editores, Lisboa, 1994
5) “ Os Sonetos a Orfeu “, Rainer Maria Rilke ,”Soneto 7 “, Trad. de Vasco Graça Moura, Quetzal Editores, Lisboa, 1994
6) Ibidem
7) Herberto Helder, “ Fonte – I “, encontrado, ao acaso, no site: “ Forum Filosofia no Terra Vista “
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