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Lucilio Santoni........... |
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Corpo de guerra |
Tradução de Ruy Ventura |
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1
(até ao fundo) |
Sobretudo de noite, os
reflexos prateados excluíam a necessidade de uma conclusão, a iminência
de uma conclusão. Mas os olhos rapidamente se dissolvem, se perdem nas
cavidades do firmamento num atormentado abraço com a terra.
A luz deste dia não
deixa imaginar um poder ser, nem um ser presente, nem um ter sido. Resta
tão só um deslizar para o fundo, para buscar quem ainda não se
transformou em sombra, silêncio puro. |
2
(em exposição) |
Se alguém viu a história
dos vivos
separados da carne
transformados em ar
água terra e fogo
transformados no sal do
mundo,
se alguém viu a história
pela primeira vez,
então pode encontrar
também um corpo
exposto aos confins,
em exposição
para dar testemunho da
própria vida infame. |
3
(fogem) |
É um ódio
que vem de outro tempo;
é um desejo que deriva
dos séculos.
E agora mesmo eles se
perderam,
Perderam a sua própria
cidade sem nunca a possuírem.
Por todo o lado, a
chuva, os camiões que viajam lentos,
o cansaço, o casaco
pesado como um sudário.
Fogem. |
4
(quatro) |
E não fala
nada diz do seu
tormento,
fechada numa língua
cheia, pela metade,
de consoantes,
confiando-se
à voz dos vingadores e
enquanto sonha
delira no final da tarde
chama os mortos, para
que venham
à sua festa. A sua
respiração leve
é daquelas que deixam
imaginar
a perda de tudo. |
5
(o ódio) |
Quando o sangue e a
memória são uma única coisa
não faz falta cumprir a
nudez, não faz falta
evitar a tortura, não
faz falta salvar a alma.
Basta gritar “odeio
todos esses rostos, odeio-os”. |
6
(vós) |
Fostes chamados
fostes chamados para
produzir escombros
para viver o tempo da
mentira e das sentinelas.
Assisti agora à corrida
dos uniformes
na direcção do mar
também corrompido pelas
cidades de areia.
Oh, as fugas… os
regressos
as ruínas da primavera,
o vidro
opaco que se quebra na
mão do viajante antes de chegar à terra prometida.
Os vossos olhos voltarão
ao horizonte, para não o verem,
numa inútil dor submersa
pela etnia do pó. |
7
(pai) |
Não é justo que as
coisas durem demasiado,
pensou enquanto olhava o
desertor que não queria cair.
A claridade seca debaixo
da ponte era quase acolhedora
e aquele corpo
agitava-se, talvez pela primavera
ou talvez pelas balas
que o preenchiam sob a pele.
Imaginou os milénios e
os povos, e notava um doce langor
como se a matéria das
estrelas lhe entrasse nas artérias.
Pai, recordo que também
a ti te custava estar de pé…
Por que não se cai? |
8
(oito) |
Queimar-se no corpo de
outro,
assim sem dar nas vistas
haverá decerto um
motivo, um critério, uma razão
e no entanto sustenho a
respiração para não chorar
quando a toda a volta
não há mais do que aquele corpo imerso no furor
dos soluços. Os
documentos queimados, oriente ocidente imenso
desorientado por um
corpo e uma voz
que nunca soube de quem
fosse ou que razão a mantinha calada. |
9
(a brisa entre as oliveiras) |
Recordais certamente
quanto era triste a brisa entre as oliveiras
naquela hora precisa
daquela tarde.
Afirmo, contudo, que a
desejei
como por vezes se deseja
um coágulo de sangue e de esperança,
Deus que fizeste deste
reino um jardim
faz que chegue quanto
antes a ressurreição da carne.
A minha boca empastada
de palavras irá em procissão, todos os dias até ela
e fá-lo-ei de tal forma
que as tuas obras venham em procissão até mim, ao meu corpo
que quer ressuscitar e
nada lhe importa, nada mais. |
10
(esgotada) |
Não haveis visto nada da
minha cidade.
Viestes, trouxestes
comida e medicamentos, trouxestes armas,
mas nada haveis visto.
Tentastes aliviar a nossa via sacra,
experimentastes o fel e
a amargura, viestes dar-nos uma oferta régia,
mas não vistes nada.
Eu, senhores, reclinada
sobre o flanco, esgotada
ao ponto de não me
reconhecer, rogo-vos que não queirais cobrir
que não queirais
esconder o meu corpo, para que todos possam ver, finalmente,
a cidade que me dá a
alegria, a agonia e a páscoa dentro deste silêncio. |
11 (noutro lugar) |
Diz que vê, ali, debaixo
daquela ponte, que vê os seus semelhantes
em caravana. Abandonam a
cidade, seguindo as grandes estradas para norte
até ao norte do mundo.
Diz que também ela queria partir
do que lhe resta, deixar
aquele corpo, aquela memória imensa
não mais sentir o bafo
dos sobreviventes. Diz que vê…
mas enquanto não
observa, tem os olhos fechados sobre o tempo
que se esfarela. As
perguntas da existência estão todas ali, com calma
se juntam para além do
novelo dos sentimentos. Diz que vê
que intui o milénio que
está lá fora, mas fora está a história
jogada nas barricadas,
cheia de névoas e lendas;
há outro lugar infinito. |
12
(doze) |
Aqui se cumpre a minha
história, ainda que a vida não queira partir, não possa partir. Começa
agora o gotejar das palavras vazias, das horas sem sentido. Sinto-me a
cair nas cavidades do ser, onde não há voz, onde a escuridão se abriu à
escuridão e a terra à terra. |
13
(nada mais) |
No fim, nada mais.
Continuo, porém, a viver, num tempo imprevisível, tão misterioso quanto
o passado, nas carícias, e o futuro em que perco o sangue. |
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Nota
Estes treze poemas de Lucilio Santoni, primeira parte de
Corpo di guerra,
livro publicado em Grottammare (Stamperia Dell’ Arancio), na Itália, em
Outubro de 2002, serviram de base a uma obra musical homónima, divulgada
pela “I CD del Manifesto”. |
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Lucilio Santoni - escritor, tradutor e
editor - nasceu em Ascoli Piceno em 24 de Janeiro de 1963. Reside em San
Benedetto del Tronto. Traduziu Melville, Stevenson, Lorca e Alemán.
Entre as suas publicações destacam-se: Dopo le orde dei
numeri (N.C.E., 1991), Il guerriero fantasioso (Clueb, 1993), Apologia
del perdente (Guaraldi, 1995), Corpo di guerra (Stamperia dell’Arancio,
2002), L’infinito nella voce (FrancoAngeli, 2004), Dell’amore -
distruzione e creazione (QuodLibet, 2005), Il gatto che scoprì l’amore
(Selecta, 2007). |
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