JOSÉ LUÍS
HOPFFER C. ALMADA

Poemas do cieiro e da chuva
(segunda versão)

1 - Poemas da chuva

                 i

Os meus horizontes são fugazes

porque do arco-íris construídos

do escarlate e do azul

lilases se extinguindo

sob os céus da Cidade Velha

 

Também o vulto de Cristo

crucificado

entre a nudez da palavra

e a inanição da ribeira

 

                        ii

a palavra.

a morte à cabeceira do sonho:

santiago ou nho nacho

 

oh! o insondável martírio

do verbo

entre as ervas das ribeiras

 

                              iii

A bruma

húmida e só

cobre o dia

 

 

Um relâmpago

risca rápido

o meu coração

 

Uma ribeira

corre em catarata

na minha alma

 

A chuva cai

desvairada

sobre a apodrecida espiga

da minha boca

 

                              iv

A hidropisia da cidade

cobriu-se de fuligem

 

É agora a idade

dos grilos e de outros insectos

hílares como cítaras na noite

                             v

                                                                   

São deveras memoráveis

estes tempos setembrinos

 

A chuva

promíscua

dorme

com os políticos

um sono sem pesadelos

                                    vi

Os vegetais

como as éguas

esganiçam

com as primeiras águas

                                   vii

Recolhem-se as baga-bagas

às luzes da noite

 

Encolhemo-nos nós

mais os gafanhotos

na sombra dos dias

 

 2 - Restos de chuva

                                                 in memoriam de Nhu Xinhu

 

ossários da esperança

cantarolando fúnebres

no limiar da sepultura

apenas pressentido

 

longos jazigos

engolindo

os restos da chuva

arribada

com a ilusão de setembro

apenas pressentido

 

solenes câmaras ardentes

acoitando o vento leste

silentes rememorados esquifes

açoitando o cadáver das cheias

apenas pressentido

 

longos meses

ininterrupto ciclo

da viva estiagem

namoriscando

as montanhas

áridas e em cio

sonhando

alucinadas

com o silvo da humidade

apenas pressentido

 

3 - Anti-chuva

                                              ao Fernando Monteiro

 

Os sonhos fedem à chuva

e os braços apodrecem

à beira dos súbitos charcos

e do frágil tornozelo dos subúrbios

 

Inexauríveis

os sonhos fedem

ante a nua ossatura

dos casebres

sitiando a cidade

e a sua enxuta

e antiquíssima idade

 

Os sonhos fedem

no aglomerado de pedras anónimas

acocoradas de desânimo

ante o jejum dos dias

e a fútil passagem dos meses

 

Os sonhos fedem à chuva

e eis-nos

de órbitas alagadas

sem saber o que fazer

da turva humidade

dos dias enclausurados

que com os sonhos

padecem  fenecem…

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA, jurista, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico. Nasceu no sítio de Pombal, Concelho de Santa Catarina, ilha de Santiago, Cabo Verde (1960). Reside actualmente em Lisboa. Licenciado em Direito pela Universidade Karl Marx, de Leipzig, e pós-graduado em Ciências Jurídicas e em Ciências Políticas e Internacionais pela Faculdade de Direito de Lisboa.

Desempenhou as funções de técnico superior em vários departamentos governamentais e de Director do Gabinete de Assuntos Jurídicos e Legislação da Secretaria-Geral do Governo.
Associado a diversas iniciativas culturais em Cabo Verde, como o Movimento Pró-Cultura (1986), o suplemento cultural Voz di Letra do jornal Voz di Povo (1986-1987) e a revista Pré-Textos; director da revista Fragmentos (1987-1998); co-fundador da Spleen-Edições (1993) e dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (1989-1992/1998). Participação regular em colóquios, em diversos países, como Senegal, Cuba, Bélgica, Brasil, Angola, Portugal, Holanda, Suíça, Moçambique; colaboração assídua em jornais e revistas literárias e jurídicas, com destaque para Fragmentos, Pré-Textos, Direito e Cidadania, Lusografias, A Semana, Liberal-Caboverde. Representado em diferentes antologias poéticas estrangeiras.

Organizou Mirabilis – de Veias ao Sol (Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e O Ano Mágico de 2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-Verdianas (2008).

Publicou: À Sombra do Sol, I e II, (1990); Assomada Nocturna (1993), Assomada Nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005); Orfandade e Funcionalização Político-Ideológica nos Discursos Identitários Cabo-Verdianos (2007), e Praianas (Revisitações do Tempo e da Cidade) (2009).

Utiliza os nomes literários Nzé di Santý Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana (crónica literária e prosa de ficção).