Calado e respeitoso, ficas perscrutando as faces
enrugadas dos comandantes islenhos retornando às agruras dos
tempos impacientes da luta político-militar conduzida em terra alheia,
irmã, alongando-se ditirâmbicos sobre os tempos da pacatez e da
legendária morabeza das ilhas,
Compreensivo, ficas contemplando as vestes escuras
preventivas dos antigos combatentes e comissários políticos, exilados
em terras estrangeiras, hospitaleiras, treinados e fortalecidos entre
povos amigos, aliados, acolhidos e ajuramentados ante a continência da
mão generalíssima de amílcar cabral para a aventura do aguardado
desembarque armado nas nossas ilhas do meio do mar, para a disseminação
de focos guerrilheiros entre os camponeses da serra malagueta, do topo
da coroa, do monte gordo, da chã das caldeiras, depois traídos pela
denúncia desertora de um antigo companheiro recrutado pela polícia
política colonial-fascista, depois mobilizados para a inexorável
fraternidade de armas, sangues e idiomas com os heróicos combatentes da
guiné ex-portuguesa,
Compassivo, ficas intentando pôr-te no seu lugar
heróico, todavia trágico e solitário, e injectar-te
das suas máscaras abandonadas aos auspícios da
defecação do secreto fel das sonegadas estórias da história, da
desinibida exposição da vileza e do pus dos tempos, das incicatrizadas
feridas das tardes de ziguinchor,
dos seus nervos desiludidos vindos de conacry,
das suas gestas e gentes solidárias, das suas díspares
intentonas, das suas inúmeras inventonas, das suas noites
torcionárias, dos seus dias fúnebres, das suas pressas carcerárias, dos
seus torturados silêncios, dos seus persistentes rumores deambulando
pelas esquinas das ruas, explodindo na sua eterna noite de pranto, ainda
carpindo, voraz e retrospectiva sobre as sombrias instigações ao
genesíaco fratricídio, à deicida vilania, ao horror homicida, de amílcar
tombando, de abel djassi dando-se em sacrifício na noite de conacry, de
amílcar três vezes baleado, de amílcar por três vezes se redimindo da
alheia falta na nocturna mesa das macabras celebrações, na tardia
indigestão dos comensais do azedo pão da ignomínia, de amílcar cabral
transfigurando-se em moisés negro da vara sagrada dos mandamentos da
dignidade, do inesgotável manancial da liberdade, da terra prometida
gizada, não mais repisada pelos pés lavradores dele abel djassi, não
mais gozada pelas mãos generosas dele amílcar, pelo corpo verdejante
dele abel, da terra prometida antevista, dele amílcar abel por três
vezes instituindo-se chama fraterna, inextinguível, da veracidade dos
tempos premonitórios dele, isaías revelando-se nas palavras proféticas
dele cumprindo-se nos estalidos letais das cápsulas da morte dele, de
abel djassi dando-se em holocausto ante o sacrilégio do kaifás kani
pilatos da expurgação do emanuel nosso, do messianismo dele amílcar,
cristo dos rebelados entre as mãos irresolutas do caim da ocasião
propícia, repelente, irrepetível, repetida entre os lábios do judas cani
do momento comprado, com o perdão e o beneplácito dele, amílcar das
cordas insolentes do desencapuçado captor, da delinquente proficiência
da espancada delação frutificada com o fascínio do amo e senhor
carcereiro entre as sombras muradas do tarrafal de santiago, do fatigado
monóculo rejeitados, dos tortuosos caminhos que navegam amarrados de
conacry a bissau rejeitados, da forca simbólica, do impávido gume do
infinito vilipêndio aguardando nas calçadas amordaçadas da capital do
império agónico rejeitados, das multidões ignaras ululando sobre as
pedras frias do rossio de lisboa rejeitadas, da rejeitada evidência da
nova nobreza e da plebe de sempre, da canalha toda rindo-se do corpo
enforcado do rei da ilha de santiago, do orgulho capturado, dos
olhos atónitos do rei vátua exilado numa ilha das imediações das
batalhas libertadoras do marechal negro tricolor encarcerado na bastilha
escravocrata, das cadeias tenebrosas, do cárcere cerimonioso, da coroa
de espinhos traiçoeiros rejeitados prefigurando a paixão dele, amílcar,
vertical na honra e na ternura, radical na observância dos princípios,
aceso na recusa do rebaixamento dele, amílcar oferecendo-se cristo negro
à polvorosa cruz, ofertando-se à lança asfixiante de inocêncio kani,
momo touré, aristides barbosa, abdulay ndjay e outros vivos mortos,
e outros futuros mortos morridos, irrecuperáveis para o panteão
da pátria, inermes para a história, todavia salvos para o limbo, para os
ignóbeis resquícios, para a pequenez dos sinistros rodapés do paradoxo
conspurcando o memorial das criaturas valorosas, todavia irreparáveis
para a inocência, dele, amílcar traído e interpelado pela raivosa
impotência de antigos companheiros de armas aliciados pela parva moeda
da ambição, desmesurada, de uma pátria vil e pequena, mercenária,
adulterando a paixão dele, amílcar entregando-se à eternidade das cores
ouro-rubro-verdes da bandeira da unidade e luta, da estrela negra
tremeluzindo, futura e opulenta, nos céus soberanos da guiné e do cabo
verde dele, abel djassi, cristo negro agonizando em conacry, para a
redenção dele, amílcar cabral, flor defumada em lume de ouro, riso
perfumado na prata e no incenso do odor das estrelas da liberdade no
seu canto cativo da glória, na perenidade da palavra justa, imorredoura
dele, amílcar cabral estatuindo-se morto imortal, possuído pela
paixão de uma pátria à medida inalienável da dignidade da pessoa humana,
à imagem e semelhança dos homens, africanos livres do sonho libertário
dele, abel amílcar djassi cabral, da casa e da semente fecunda de
juvenal cabral, da genealogia das gentes dos reis borges de achada
falcão de santa catarina, do parentesco dos costa lopes dos engenhos, da
raça negra heróica do nome denunciando em londres os desmazelos da vil
condição de colónia, ressuscitando com o corpo indómito do primeiro
combatente caído em tite, para sempre comandante rui djasssi, da gerada
luminosidade da família cabral, gerando-se nome único, criando-se nome
singular, dele da generosidade do umbigo enterrado com o verde dos
mangais de bafatá da primeira infância em terra firme africana, dele da
segunda vida repleta cobrindo-se do verde mar das ilhas, dele
maravilhando-se com os cajueiros da plena maturidade no mundo dele, da
fecundação do abraço materno da terra natal dele, engenheiro da lavra e
dos sonhos das gentes dele, da universalidade nos augúrios fraternos dos
povos combatentes deste vasto mundo, dele dos tempos todos do simples
africano que quis saldar a sua dívida para com o seu povo e viver a sua
época dele, da ampla e nominada descendência de africanos
combatentes ilustres, tais aníbal barka, amílcar barka, samory touré,
abdel kader, al mahdi, meneliki, shaka zulu, dele da fertilizada
camaradagem de sábios e locutores de todos os recantos da palavra
incisiva e libertadora dele, da inexpugnável irmandade com a humilde
e anónima humanidade, toda e inteira, dele do aquoso carinho materno
de iva pinhel évora e do seu umbigo semeado em godim da ilha de santiago
do sotavento caboverdiano, de apelidos tracejados nos areais da ilha
pastoril da boavista do barlavento caboverdiano, de suor derramado
nos trabalhos e nos dias de bolama, praia, san vicente e bissau,
dela a um tempo eva e maria, mater dolorosa da pátria e da
pietá, do seu folhoso regaço, doravante vazio, das suas vestes
lenhosas, ainda lacrimejando na noite de conacry, dos seus fantasmas
emboscados, ainda redivivos, dos seus dias albinos, dos seus deuses
despigmentados, alvos nas túnicas brancas do luto e do estádio lotado,
nas exéquias fúnebres do menino da sua mãe iva, na purificação do
menino da sua mãe-terra, guinécaboverde, do menino chorado pelos meninos
do chão natal das suas duas mátrias, do menino velado pelos meninos da
sua mãe de criação, a terra toda e inteira de todas as criaturas
humanas, das cabras e das panteras, de todos os seres vivos, das pedras
e das pombas, de todos os seres inertes e rumorejantes, do menino em
conacry caído, na sua noite atordoada, nos seus tumores ainda
corroendo-se nas intrigas políticas, nos golpes palacianos, nas diurnas
e nocturnas execuções sumárias, nas soturnas eliminações físicas, na
sempre tempestiva excomunhão de adversários políticos e inimigos
ideológicos, na abrupta destituição de altos cargos dirigentes no
partido e no estado, na consentida expatriação de afectos e desafectos
da família e da vizinhança, por via da força das armas e de golpes de
estado, ainda e sempre fulminantes.
Silencioso, ficas escrutinando o teor dos pêsames,
apreensivo ficas exaurindo a cor das condolências apresentando-se de
cara levantada aos heróis nacionais do sahel insular, pela
segunda vez vestidos do negro retinto, pela segunda vez envoltos do
silêncio distinto do pesado luto,
Pesaroso, ficas mensurando os seus rostos lívidos,
doravante entregues à inumação do espírito profanado, da alma penada de
amílcar,
as suas sobrancelhas conturbadas, todavia tenazes,
doravante entregues à exumação da memória sagrada dos inesquecíveis
mártires das ilhas e do país irmão, dos filhos anónimos do povo
guineense perecidos, inumeráveis, na luta armada de libertação
bi-nacional,
os seus olhos esbugalhados, doravante entregues à
autópsia dos mitos e à dissecação da alma sangrada, todavia imorredoira,
do herói do povo, da sua fronte alta e nua, da sua súmbia
carismática, dos seus lábios grossos banhados na fraternidade dos povos,
exercitados na arma da teoria, dos seus ouvidos cingidos pela
sensatez e pela sabedoria, dos seus óculos escuros marcados pelo fecundo
brilho das florestas africanas impenetráveis, das suas lunetas metálicas
reflectindo a luz fluorescente dos areópagos internacionais, a luz
ondulante das bolanhas das duas guinés, a luz ofuscante das savanas do
mali e do senegal, a luz faíscante dos desertos da argélia, do marrocos
e da mauritânia, a luz ampla das cidades do sahel, a luz azul das urbes
do mediterrâneo, a luz calorosa de havana e de santiago de cuba, a luz
toda de adis abeba, a luz gelada de moscovo e berlim, a luz branca de
praga e budapeste, a luz oblíqua de pequim, a luz baça de londres, a luz
ambígua de paris e nova york, a luz fosca e carinhosa das cidades da
escandinávia, fraternas da sua biblioteca deslocando-se entre as
narrativas dos griots e os provérbios das finaderas, dos
seus dois torrões amados, das suas duas almejadas soberanias populares
irrompendo súbitas no concerto universal das nações livres e
independentes, dos seus estados proclamados pelos povos solenes e
soberanos na antecâmara limpa de escombros e passados ressentimentos,
nos umbrais referendados da sua pátria africana futura, pensada una e
solidária,
os seus deliberados esquecimentos, as suas calculadas
amnésias, doravante entregues à flagelação do pesadelo, às labaredas do
impossível olvido, à causticação dos maus agoiros e das brumas da morte,
às intermináveis querelas dos outrora festejados companheiros de luta,
às insolúveis controvérsias dos antigos camaradas de armas e de ideários,
às inultrapassáveis contendas dos irmãos desavindos postados sobre a
turbulência e o atrito dos corpos separados, dos corações desfalecidos,
dos estados de espírito litigiosos, das amargas disposições das almas,
doravante secessionistas da pátria dantes germinando das nossas nações
africanas, das suas sombras lacónicas, dos seus esporádicos abraços,
outrora sublimando-se irmãs, outrora sonhadas gémeas entretecidas em
laços duradouros e indissolúveis, outrora erigidas inexpugnáveis sobre
os ecos da lonjura, das orografias relevando-se complementares, das
águas desencontradas das nossas terras africanas da guiné e de cabo
verde, doravante definitivamente libertas uma da outra.
Aliviado, ficas dissecando os tempos da gratificação,
insípido ficas desculpando os inóspitos bastidores da tristeza, das
lágrimas e das mágoas passadas, frio ficas desvelando o teatro das
aparências, das difundidíssimas parábolas da bíblia reiterando a
inelutável transitoriedade dos tempos de todas coisas sob o sol, das
instrutivíssimas lições da história asseverando, versadas, a inevitável
reversibilidade dos sentidos inoculados pelos deuses, os mais eternos,
os mais omniscientes, e pelos homens, os mais atentos, os mais teimosos,
os mais astuciosos, os mais fecundos, os mais sábios, os mais adivinhos,
assim também da fraternidade forjada na luta e na comunidade de
aspirações e dos projectados interesses dos povos, dos mistérios, das
maldições, das mistificações da dita unidade entre o cavalo e o
cavaleiro, do lento estertor da chantagem política por mor dos
muitos corpos heróicos finados para a história e para a glória dos povos
da Guiné e de cabo verde, da África, do terceiro mundo e da humanidade,
da verberação da vassalagem ante a militarista megalomania dos
militantes armados do nosso partido, dos valentes comandantes das
zonas libertadas e das regiões militares então em disputa na nação
africana forjada na luta, dos celebrizados chefes da guerra de
guerrilha, dos grandes militares agraciados pela indomável bravura
em combate, dos comissários do povo perspicazes, doravante alcandorados,
generais e almirantes, ministros e conselheiros da revolução, ao poder
supremo do partido e do estado do extraís irmão, para o ajustamento dos
medos e dos pressentimentos, para o reajustamento dos ressentimentos,
dos desastres e dos bolores de há muito inoculados, para a mitigação dos
sonhos e das utopias de outrora, dos seus fantasmas elementares,
para a subtil decapitação dos seus heróis preliminares, do merecimento
da sua vida e obra, das suas palavras exemplares, sempre precursoras,
sempre lavradoras do futuro, ainda e sempre acompanhando os passos e as
afrontas de apitei, ainda e sempre convivendo com a gentileza e a
audácia do povo, das suas intermitentes irrupções de cólera.
Lisboa, Dezembro de 2010/Janeiro de 2011
José Luís Hopffer C. Almada |