Saudoso, ficas recriando as paisagens altas e
enevoadas da serra malagueta, enamoradas das chãs de achada falcão, das
detalhadas fracturas da infância do filho de nho juvenal cabral, da sua
precária, conquanto sã e nobre genealogia, da sua casa-grande, do seu
amplo quintal de debulha do milho, do feijão e de outros cereais das
colheitas de novembro e dezembro, da sua terra vermelha circundante do
remanso e da alegria das águas de fonteana, das suas árvores de fruto
sinalizando os infalíveis cronogramas da vida e da morte, dos seus
passeios guarnecidos de acácias rubras, de floridos cardeais e
buganvílias, das suas criaturas colectoras das purgas das plantas e do
destino, das suas oleaginosas acossadas pelos machins dos moços de
sedeguma, pelas facas dos homens de tomba-touro, pelas pedras das
crianças do birianda, pelos machados das mulheres de ribeirão manuel,
dos seus arbustos assediados pelos órfãos esfaimados das colinas de cruz
grande.
Indefectível, ficas emoldurando o percurso islenho do
menino de sua mãe, do seu corpo pudico emaranhando-se
castanho-escuro às lembranças do verde imprescritível da sua bafatá
natal, da densa vegetação da sua outra terra amada, da foz do geba, dos
seus músculos atletas movendo-se nas ruelas insalubres de ponta-belém,
das suas pernas ganhadoras campeando nos poeirentos campos de futebol
dos subúrbios da cidade da praia, das suas mãos amorosa da máquina de
costura e dos dedos fatigados, crepusculares de nha iva, dos seus olhos
cultivados nas lentes tímidas, renegados pelos enfatuados companheiros
das lides literárias embrenhados na dissecação dos cadáveres de odes e
sonetos, na explanação dos males da terra abandonada pela rima e pela
grandiloquência dos velhos vates das ilhas, erodida pela incúria, pela
ignorância e pela desflorestação, da sua pupila marítima alongando-se
prolífera pela baía vazia de barcos e de carvão do porto grande de san
vicente, pelas distâncias do vasto mundo defronte, pelas rotas
conducentes aos templos do saber da capital do império, ao clandestino
tirocínio da lisboa insubmissa, às cicatrizes abertas das terras do
alentejo, à dor calada, implosiva, dos trabalhadores das plantações de
angola, às fainas agrícolas, às memórias guerreiras dos camponeses da
guiné, às indagações universais do lato mundo alado em mudança
Solícito, ficas moldando o rosto recto de amílcar
debruçado sobre as límpidas nascentes de txororó, depois acabrunhando-se
enlutado sobre as memórias destroçadas das muitas vítimas das
as-secas, das inúmeras fomes e mortandades, depois definhando-se
enluarado sobre as valas comuns da década de quarenta, depois
erguendo-se palavra plena repleta do cerimonioso silêncio dos campesinos
de txuba txobe, da solenidade metafórica dos anciãos das aldeias de
achada-além e águas belas, da sombra ínvia dos lavradores do colonato de
chão bom e das vozes metropolitanas contestatárias aprisionadas na
colónia penal vizinha, na reclusão do campo de concentração do tarrafal,
da dúbia desmesura dos seus murros e desalentos caiados do branco da sua
reputação de campo de morte lenta repercutindo nos tempos
abafados em receio, nos tempos recheados de silêncio.
Eufórico, ficas revivendo os dilatados tempos da
circunvalação da ilha maior, da circum-navegação das suas íngremes
estações, das suas estradas imprevisíveis construídas sobre a
visibilidade da afronta e do desaire, do desastre iminente, e os verdes
desfiladeiros de figueira das naus e figueira muita, dos tempos
serpenteando com as gentes do planalto da assomada, do fundo dos
engenhos, das angras da calheta de san miguel, das hortas de santa cruz
até às portas abertas, escancaradas do presídio do tarrafal e à aparição
das suas efígies heróicas, das suas silhuetas atónitas, libertas para o
regaço das multidões entusiastas, das suas vestes talhadas para a
urgência dos tempos de acolhimento do sangue e do coração de amílcar,
dos seus tempos da nova largada das ilhas, dos seus tempos do
definitivo enterro dos mitos passados, persistentes, coloniais, dos seus
tempos da reafricanização dos espíritos, da profusão da súmbia,
do bubú feminino, da sulada, da babalaika, dos panos da terra, das
camisas djila, dos penteados afros, das barbas densas e irreverentes e
de outros inconfundíveis sinais do reencontro com o rosto escuro,
aberto, descoberto das origens desde há muito sonegadas, dos tempos
grunhos ritmados pelo batuco e pela incandescência dos cabelos
crespos, arredondados para a dimensão da dor do mundo e da controvérsia,
tais negros algodoais crepitando rebeldes sobre as ruínas dos tempos
outros, latifundiários, das palavras finas, mofinas, das expressões
mercantis, do verbo timorato, da pátria antiga agónica, renegada, da
longínqua pátria peninsular, remordendo-se no despertar da nova nação
lusitana, convulsiva e sonhadora, em abril pluviosa, em maio solidária,
em setembro esperançosa, em novembro sorridente.
Entusiasmado, ficas rememorando os celebrados tempos
juninos da irruptiva eclosão da história, dos seus profetas e mártires,
dos seus filhos dilectos, pródigos de razão e valentia, dos seus míticos
heróis regressados, abraçados ao ritmo esfusiante das ruas fervilhantes
de slogans e protestos, da explosão da alegria no reencontro com as
pombas da tabanca, com o saracoteio dos seus olhos gratos, com o
frenesim dançante, lascivo e não mais pecaminoso das ancas no colá
sanjon, com os pilões ecoando as chuvosas gargalhadas do milho e do
tambor nos soçobrados alicerces do sobrado e do morgadio, nas fissuradas
faces da branca ganância deglutindo a lava e o café, com o desmedido
orgulho da ostentação das faces crioulas, nossas, diversas, dos cabelos
muitos, sumptuosos, das gentes das ilhas, com a devassa dos labirintos
da amnésia e da ocultação do nosso tetravô africano, escravo
insulado entre o mar e a terra, desterrado entre a nau das américas e a
cana-de-açúcar das ilhas, expatriado e deslocado entre a nau
catrineta e a infinita pescaria do amargor da humilhação, da sua
tristiose curtindo-se à beira dos funcos e dos casebres de pedra e
palha, dos seus irmãos de raça e desgraça, das suas angústias, dos seus
inaudíveis lamentos, das suas saudades da casa paterna, longínqua,
devastada na terra firme africana, para nunca mais perdida, dos
seus levantes, da sua inicial e renitente comunhão com a terra insular
árida e exaurida, da sua exumação na sua nova mátria madrasta, dele e
dos sus rebentos negros e mulatos, dele e da sua amada, arredada do seu
aconchego na esteira de palha para o desvario da luxúria do clã dos seus
senhores, dele e dos filhos negros e mulatos do ventre das suas
companheiras da dor e da intemperança.
Comovido aprendiz, ficas cultivando os castanhos
nutrientes do sol e da substância do mundo, do nosso cabo
verde de esperança, da terra retornada às fontes da desidratação do
ser, intentando afastar-se da distância e do mar gentio da
terra-longe, esparramando-se pelo júbilo e pelo canto chão dos
trovadores, dos poetas populares, dos vates de intervenção social, pelo
redondo metaforismo dos desvendadores dos herméticos códigos da
subsistência e da floração do verde sobre a cabeça calva de deus,
da árvore e do tambor, do pão e do fonema eclodindo no
cântico do habitante, embevecido com caboverde, amadamente em
construção, com o seu povo de notcha, com os seus sentidos
letrados no crioulo, com as suas gestas, com as suas crenças, com os
seus pastores, pescadores e catraeiros, com as suas panelas de milho
vermelho, púbere, raríssimo, com os seus alguidares de milho branco,
importado, molhado de véspera para o cuscus e o prazer da vizinhança,
com as suas crianças castanhas, negras, brancas, crespas, frisadas,
loiras, pétalas da mesma flor arquipelágica, com as suas frágeis
auréolas de cordeiros de deus, com as suas confissões afinadas
nas noites livres de áfrica, com os seus sons revirando-se
com as alvíssaras das folhagens de setembro e das novas conjunturas
divisadas germinais nos traiçoeiros tempos de outubro, nos incertos dias
de novembro, nos chuvosos dias de janeiro batendo no portão das
nossas ilhas.
Surpreso, ficas planando sobre os rostos de repente
crispados, sobre as bocas de repente amarguradas dos antigos
companheiros do militante número do nosso partido e a sua nunca
acabada rememoração dos incomensuráveis sacrifícios consentidos na nossa
longa e gloriosa luta armada de libertação nacional, as muitas
façanhas praticadas na frente político-diplomática, na guerra de
guerrilha de longa duração levada a cabo conjuntamente com a força
física principal da luta constituída pelos bravos combatentes da
guiné-bissau, na logística da guerra e das zonas libertadas.
Convicto, ficas dissecando todas as outras, as
arroladas provas da genialidade político-estratégica do princípio da
unidade guiné-cabo verde fundado nos laços históricos e de sangue entre
as populações, na duradoura comunidade de interesses dos dois
territórios africanos submetidos à multissecular dominação estrangeira
do mesmo poder colonial bem como na sua complementaridade geo-económica
tanto no período colonial como na actualidade dos dias das nossas vidas
e das vidas futuras das gerações vindouras com vista ao seu
desenvolvimento acelerado e auto-sustentado,
Convencido, ficas desencobrindo todas as provas,
genuínas e cabais, na prática comprovadas, do princípio da unidade
guiné-caboverde solidificado na aliança fraternitária para a luta comum
encetada com o povo heróico do país irmão na busca, aliás, coroada de
total e inequívoco sucesso, do nosso destino africano, livremente
escolhido pelo povo das ilhas, sob a esclarecida direcção do nosso
glorioso partido e do nosso líder imortal, barbaramente assassinado em
desespero de causa dos agentes do imperialismo e do exército agressor,
ocupante de uma pequena parte do solo sagrado da nossa terra firme da
guiné e das ilhas de cabo verde, a mando das forças mais retrógradas e
obscurantistas do colonial-fascismo português, conforme rezavam os
obituários, os elogios e orações fúnebres, os cartazes dos activistas
ocidentais, os comunicados de guerra lidos na rádio libertação.
Consternado, ficas pesando as faúlhas das pelejas, a
sua estranheza entranhada na insondada história das nossas ilhas
crioulas afro-atlânticas, consciencioso ficas sopesando as cores
ouro-verde-rubras do eventual vitupério, da desesperança na balança das
mitologias e dos seus sumo-pontífices, das suas dissensões, das suas
desnorteadas geografias, das suas trocas de palavras inflamadas,
demolidoras, das suas antigas raivas desenterradas desembocando
difamatórias nas silhuetas dos rios atiçados de ódio e de ressentimento
navegando nas praças plenas de regozijo e alegria, atingindo caluniosas
os rostos pardos das ribeiras envoltas em pranto e remorso, revolvidas
em alívio, em gratidão e orgulho, devastando as efígies dos guardiães
dos cemitérios, dos coveiros das contemporâneas ossadas dos comandos
africanos, e de outros vilipendiados mercenários da pátria lusa, e de
outros sofisticados guerreiros aliciados pelo fúnebre odor do sangue e
da impunidade, e de outros supostos colaboracionistas do mais velho e
obsoleto dos impérios coloniais, amaldiçoados pela veemência da derrota,
sua e dos tempos dos gritos desventrados das mulheres grávidas de pano
preto, sumariamente executados em praça pública, no sigilo dos matagais,
na inconfidência dos cárceres nauseabundos, e de outros pronunciados
fautores da discórdia e do morticínio fuzilados, sem o devido processo
penal, sem julgamento prévio, por deliberação unânime do conselho
executivo da luta do partido, sufragada pelo conselho superior da luta,
aplaudida pelos militantes do partido dos vencedores da guerra na nossa
terra da guiné, ainda em estado de prevenção, e de outros estropiados
congeminadores do dissídio e do litígio, e de outros conspiradores
implicados no bárbaro assassinato do nosso líder imortal, e outros
actores de reiteradas tentativas de invasão e de derrube do nosso regime
progressista a soldo do imperialismo internacional, e de outros
beneficiários de comutação da pena de morte em prisão perpétua em razão
da clemência e da política da recuperação do homem propugnada pelo nosso
partido, e de outros perpetradores da desunião das fileiras cerradas
do nosso povo em luta, uníssono na implementação dos altos e
generosos ideais do nosso partido elaborados pelo nosso saudoso líder
para a concretização da justa aspiração do nosso povo à construção da
paz, do progresso e da felicidade para todos os seus filhos nas nossas
terras africanas da guiné e de cabo verde, nos termos dos
noticiários radiofónicos captados no país irmão e reproduzidos ipsis
verbis nos jornais nô pintcha e voz de povo.
Calado e respeitoso, ficas perscrutando as faces
enrugadas dos comandantes islenhos retornando às agruras dos
tempos impacientes da luta político-militar conduzida em terra alheia,
irmã, alongando-se ditirâmbicos sobre os tempos da pacatez e da
legendária morabeza das ilhas,
Compreensivo, ficas contemplando as vestes escuras
preventivas dos antigos combatentes e comissários políticos, exilados
em terras estrangeiras, hospitaleiras, treinados e fortalecidos entre
povos amigos, aliados, acolhidos e ajuramentados ante a continência da
mão generalíssima de amílcar cabral para a aventura do aguardado
desembarque armado nas nossas ilhas do meio do mar, para a disseminação
de focos guerrilheiros entre os camponeses da serra malagueta, do topo
da coroa, do monte gordo, da chã das caldeiras, depois traídos pela
denúncia desertora de um antigo companheiro recrutado pela polícia
política colonial-fascista, depois mobilizados para a inexorável
fraternidade de armas, sangues e idiomas com os heróicos combatentes da
guiné ex-portuguesa,
Compassivo, ficas intentando pôr-te no seu lugar
heróico, todavia trágico e solitário, e injectar-te
das suas máscaras abandonadas aos auspícios da
defecação do secreto fel das sonegadas estórias da história, da
desinibida exposição da vileza e do pus dos tempos, das incicatrizadas
feridas das tardes de ziguinchor,
dos seus nervos desiludidos vindos de conacry,
das suas gestas e gentes solidárias, das suas díspares
intentonas, das suas inúmeras inventonas, das suas noites
torcionárias, dos seus dias fúnebres, das suas pressas carcerárias, dos
seus torturados silêncios, dos seus persistentes rumores deambulando
pelas esquinas das ruas, explodindo na sua eterna noite de pranto, ainda
carpindo, voraz e retrospectiva sobre as sombrias instigações ao
genesíaco fratricídio, à deicida vilania, ao horror homicida, de amílcar
tombando, de abel djassi dando-se em sacrifício na noite de conacry, de
amílcar três vezes baleado, de amílcar por três vezes se redimindo da
alheia falta na nocturna mesa das macabras celebrações, na tardia
indigestão dos comensais do azedo pão da ignomínia, de amílcar cabral
transfigurando-se em moisés negro da vara sagrada dos mandamentos da
dignidade, do inesgotável manancial da liberdade, da terra prometida
gizada, não mais repisada pelos pés lavradores dele abel djassi, não
mais gozada pelas mãos generosas dele amílcar, pelo corpo verdejante
dele abel, da terra prometida antevista, dele amílcar abel por três
vezes instituindo-se chama fraterna, inextinguível, da veracidade dos
tempos premonitórios dele, isaías revelando-se nas palavras proféticas
dele cumprindo-se nos estalidos letais das cápsulas da morte dele, de
abel djassi dando-se em holocausto ante o sacrilégio do kaifás kani
pilatos da expurgação do emanuel nosso, do messianismo dele amílcar,
cristo dos rebelados entre as mãos irresolutas do caim da ocasião
propícia, repelente, irrepetível, repetida entre os lábios do judas cani
do momento comprado, com o perdão e o beneplácito dele, amílcar das
cordas insolentes do desencapuçado captor, da delinquente proficiência
da espancada delação frutificada com o fascínio do amo e senhor
carcereiro entre as sombras muradas do tarrafal de santiago, do fatigado
monóculo rejeitados, dos tortuosos caminhos que navegam amarrados de
conacry a bissau rejeitados, da forca simbólica, do impávido gume do
infinito vilipêndio aguardando nas calçadas amordaçadas da capital do
império agónico rejeitados, das multidões ignaras ululando sobre as
pedras frias do rossio de lisboa rejeitadas, da rejeitada evidência da
nova nobreza e da plebe de sempre, da canalha toda rindo-se do corpo
enforcado do rei da ilha de santiago, do orgulho capturado, dos
olhos atónitos do rei vátua exilado numa ilha das imediações das
batalhas libertadoras do marechal negro tricolor encarcerado na bastilha
escravocrata, das cadeias tenebrosas, do cárcere cerimonioso, da coroa
de espinhos traiçoeiros rejeitados prefigurando a paixão dele, amílcar,
vertical na honra e na ternura, radical na observância dos princípios,
aceso na recusa do rebaixamento dele, amílcar oferecendo-se cristo negro
à polvorosa cruz, ofertando-se à lança asfixiante de inocêncio kani,
momo touré, aristides barbosa, abdulay ndjay e outros vivos mortos,
e outros futuros mortos morridos, irrecuperáveis para o panteão
da pátria, inermes para a história, todavia salvos para o limbo, para os
ignóbeis resquícios, para a pequenez dos sinistros rodapés do paradoxo
conspurcando o memorial das criaturas valorosas, todavia irreparáveis
para a inocência, dele, amílcar traído e interpelado pela raivosa
impotência de antigos companheiros de armas aliciados pela parva moeda
da ambição, desmesurada, de uma pátria vil e pequena, mercenária,
adulterando a paixão dele, amílcar entregando-se à eternidade das cores
ouro-rubro-verdes da bandeira da unidade e luta, da estrela negra
tremeluzindo, futura e opulenta, nos céus soberanos da guiné e do cabo
verde dele, abel djassi, cristo negro agonizando em conacry, para a
redenção dele, amílcar cabral, flor defumada em lume de ouro, riso
perfumado na prata e no incenso do odor das estrelas da liberdade no
seu canto cativo da glória, na perenidade da palavra justa, imorredoura
dele, amílcar cabral estatuindo-se morto imortal, possuído pela
paixão de uma pátria à medida inalienável da dignidade da pessoa humana,
à imagem e semelhança dos homens, africanos livres do sonho libertário
dele, abel amílcar djassi cabral, da casa e da semente fecunda de
juvenal cabral, da genealogia das gentes dos reis borges de achada
falcão de santa catarina, do parentesco dos costa lopes dos engenhos, da
raça negra heróica do nome denunciando em londres os desmazelos da vil
condição de colónia, ressuscitando com o corpo indómito do primeiro
combatente caído em tite, para sempre comandante rui djasssi, da gerada
luminosidade da família cabral, gerando-se nome único, criando-se nome
singular, dele da generosidade do umbigo enterrado com o verde dos
mangais de bafatá da primeira infância em terra firme africana, dele da
segunda vida repleta cobrindo-se do verde mar das ilhas, dele
maravilhando-se com os cajueiros da plena maturidade no mundo dele, da
fecundação do abraço materno da terra natal dele, engenheiro da lavra e
dos sonhos das gentes dele, da universalidade nos augúrios fraternos dos
povos combatentes deste vasto mundo, dele dos tempos todos do simples
africano que quis saldar a sua dívida para com o seu povo e viver a sua
época dele, da ampla e nominada descendência de africanos
combatentes ilustres, tais aníbal barka, amílcar barka, samory touré,
abdel kader, al mahdi, meneliki, shaka zulu, dele da fertilizada
camaradagem de sábios e locutores de todos os recantos da palavra
incisiva e libertadora dele, da inexpugnável irmandade com a humilde
e anónima humanidade, toda e inteira, dele do aquoso carinho materno
de iva pinhel évora e do seu umbigo semeado em godim da ilha de santiago
do sotavento caboverdiano, de apelidos tracejados nos areais da ilha
pastoril da boavista do barlavento caboverdiano, de suor derramado
nos trabalhos e nos dias de bolama, praia, san vicente e bissau,
dela a um tempo eva e maria, mater dolorosa da pátria e da
pietá, do seu folhoso regaço, doravante vazio, das suas vestes
lenhosas, ainda lacrimejando na noite de conacry, dos seus fantasmas
emboscados, ainda redivivos, dos seus dias albinos, dos seus deuses
despigmentados, alvos nas túnicas brancas do luto e do estádio lotado,
nas exéquias fúnebres do menino da sua mãe iva, na purificação do
menino da sua mãe-terra, guinécaboverde, do menino chorado pelos meninos
do chão natal das suas duas mátrias, do menino velado pelos meninos da
sua mãe de criação, a terra toda e inteira de todas as criaturas
humanas, das cabras e das panteras, de todos os seres vivos, das pedras
e das pombas, de todos os seres inertes e rumorejantes, do menino em
conacry caído, na sua noite atordoada, nos seus tumores ainda
corroendo-se nas intrigas políticas, nos golpes palacianos, nas diurnas
e nocturnas execuções sumárias, nas soturnas eliminações físicas, na
sempre tempestiva excomunhão de adversários políticos e inimigos
ideológicos, na abrupta destituição de altos cargos dirigentes no
partido e no estado, na consentida expatriação de afectos e desafectos
da família e da vizinhança, por via da força das armas e de golpes de
estado, ainda e sempre fulminantes.
Silencioso, ficas escrutinando o teor dos pêsames,
apreensivo ficas exaurindo a cor das condolências apresentando-se de
cara levantada aos heróis nacionais do sahel insular, pela
segunda vez vestidos do negro retinto, pela segunda vez envoltos do
silêncio distinto do pesado luto,
Pesaroso, ficas mensurando os seus rostos lívidos,
doravante entregues à inumação do espírito profanado, da alma penada de
amílcar,
as suas sobrancelhas conturbadas, todavia tenazes,
doravante entregues à exumação da memória sagrada dos inesquecíveis
mártires das ilhas e do país irmão, dos filhos anónimos do povo
guineense perecidos, inumeráveis, na luta armada de libertação
bi-nacional,
os seus olhos esbugalhados, doravante entregues à
autópsia dos mitos e à dissecação da alma sangrada, todavia imorredoira,
do herói do povo, da sua fronte alta e nua, da sua súmbia
carismática, dos seus lábios grossos banhados na fraternidade dos povos,
exercitados na arma da teoria, dos seus ouvidos cingidos pela
sensatez e pela sabedoria, dos seus óculos escuros marcados pelo fecundo
brilho das florestas africanas impenetráveis, das suas lunetas metálicas
reflectindo a luz fluorescente dos areópagos internacionais, a luz
ondulante das bolanhas das duas guinés, a luz ofuscante das savanas do
mali e do senegal, a luz faíscante dos desertos da argélia, do marrocos
e da mauritânia, a luz ampla das cidades do sahel, a luz azul das urbes
do mediterrâneo, a luz calorosa de havana e de santiago de cuba, a luz
toda de adis abeba, a luz gelada de moscovo e berlim, a luz branca de
praga e budapeste, a luz oblíqua de pequim, a luz baça de londres, a luz
ambígua de paris e nova york, a luz fosca e carinhosa das cidades da
escandinávia, fraternas da sua biblioteca deslocando-se entre as
narrativas dos griots e os provérbios das finaderas, dos
seus dois torrões amados, das suas duas almejadas soberanias populares
irrompendo súbitas no concerto universal das nações livres e
independentes, dos seus estados proclamados pelos povos solenes e
soberanos na antecâmara limpa de escombros e passados ressentimentos,
nos umbrais referendados da sua pátria africana futura, pensada una e
solidária,
os seus deliberados esquecimentos, as suas calculadas
amnésias, doravante entregues à flagelação do pesadelo, às labaredas do
impossível olvido, à causticação dos maus agoiros e das brumas da morte,
às intermináveis querelas dos outrora festejados companheiros de luta,
às insolúveis controvérsias dos antigos camaradas de armas e de ideários,
às inultrapassáveis contendas dos irmãos desavindos postados sobre a
turbulência e o atrito dos corpos separados, dos corações desfalecidos,
dos estados de espírito litigiosos, das amargas disposições das almas,
doravante secessionistas da pátria dantes germinando das nossas nações
africanas, das suas sombras lacónicas, dos seus esporádicos abraços,
outrora sublimando-se irmãs, outrora sonhadas gémeas entretecidas em
laços duradouros e indissolúveis, outrora erigidas inexpugnáveis sobre
os ecos da lonjura, das orografias relevando-se complementares, das
águas desencontradas das nossas terras africanas da guiné e de cabo
verde, doravante definitivamente libertas uma da outra.
Aliviado, ficas dissecando os tempos da gratificação,
insípido ficas desculpando os inóspitos bastidores da tristeza, das
lágrimas e das mágoas passadas, frio ficas desvelando o teatro das
aparências, das difundidíssimas parábolas da bíblia reiterando a
inelutável transitoriedade dos tempos de todas coisas sob o sol, das
instrutivíssimas lições da história asseverando, versadas, a inevitável
reversibilidade dos sentidos inoculados pelos deuses, os mais eternos,
os mais omniscientes, e pelos homens, os mais atentos, os mais teimosos,
os mais astuciosos, os mais fecundos, os mais sábios, os mais adivinhos,
assim também da fraternidade forjada na luta e na comunidade de
aspirações e dos projectados interesses dos povos, dos mistérios, das
maldições, das mistificações da dita unidade entre o cavalo e o
cavaleiro, do lento estertor da chantagem política por mor dos
muitos corpos heróicos finados para a história e para a glória dos povos
da Guiné e de cabo verde, da África, do terceiro mundo e da humanidade,
da verberação da vassalagem ante a militarista megalomania dos
militantes armados do nosso partido, dos valentes comandantes das
zonas libertadas e das regiões militares então em disputa na nação
africana forjada na luta, dos celebrizados chefes da guerra de
guerrilha, dos grandes militares agraciados pela indomável bravura
em combate, dos comissários do povo perspicazes, doravante alcandorados,
generais e almirantes, ministros e conselheiros da revolução, ao poder
supremo do partido e do estado do extraís irmão, para o ajustamento dos
medos e dos pressentimentos, para o reajustamento dos ressentimentos,
dos desastres e dos bolores de há muito inoculados, para a mitigação dos
sonhos e das utopias de outrora, dos seus fantasmas elementares,
para a subtil decapitação dos seus heróis preliminares, do merecimento
da sua vida e obra, das suas palavras exemplares, sempre precursoras,
sempre lavradoras do futuro, ainda e sempre acompanhando os passos e as
afrontas de apitei, ainda e sempre convivendo com a gentileza e a
audácia do povo, das suas intermitentes irrupções de cólera.
Lisboa, Dezembro de 2010/Janeiro de 2011
José Luís Hopffer C. Almada |