JOSÉ LUÍS
HOPFFER C. ALMADA

ASSOMADA NOCTURNA

Autobiografia

Nasci numa aldeia

à sombra de um sobrado

e da austera penumbra das montanhas

 

Ainda criança

galguei a orografia de Assomada

e fiz-me árvore do planalto

 

O serpentear das estradas

fez-me desembocar no mar

junto a uma cidade

efeitiçada de azul e murmúrio

 

De costas para o mar

Insinuei-me

- para além da ilha -

na lenta e transparente caminhada das nuvens

para beijar loucamente

a neve com odor a carvão de Leipzig

 

Hoje sei que sou

um simples signo de Adão e Eva

e do seu éden pétreo no Piku Ntoni 

 

Assomada nocturna

À Vila que me viu crescer

  Aos meninos com quem cresci

Lembras-te, Digho

Das noites longas de Assomada

Feitas Far-West

E dos rios de fodjadas

Sob os nossos pés ritmando

de crianças

em loucas correrias verdes?

 

Todos nós éramos índios

Negros brancos e mulatos

Todos éramos pele-vermelhas

De escalpes crioulos 

 

Lembras-te, Tchikosa

Das noites longas de assomada

Das varandas debruçadas sobre Assomada

E dos pardieiros feitos castelos

Riba Kontra Baxu Kutelu Kontra Somada

Nas noites longas de Assomada?

 

Todos nós éramos

Nhagar de coração

Plenos de Natal

Plenos de Assomada

 

Lembras-te, Djinhu

Dos bolos do Lito

Dos bolos da Miséria

Nas ruas feitas praias

E dos nossos corpos piratas estendidos

Nas noites longas de Assomada?

 

Todos nós éramos destinos de pés descalços

Plantas dos pés do Destino

Folhas podres do Destino 

 

Lembras-te, Manú

Do corpo longo dos karapatis floridos

Do corpo longo das canções de crepúsculo

Do redemoinho de vento e do diabo

Nos campinhos de Achada Riba?

 

Todos nós éramos bolas velozes

Circulares de beleza

Rodopiando faca aos infernos

 

Todos éramos elegres espectros

Ardendo vegetalmente ante o mistério das plantas

 

 

Ai noites de Assomada

do longínquo rumor dos poilões

e da branca mensagem envolvendo

o voo das garças e dos milhafres

sobre Santiago de Caboverde e o rude verde das lemba-lembas

 

Ai noites de Assomada

da densa nocturnidade

velejando no vogar da memória

dos vermelhos rochedos

insertos

e Cruz dos Picos

 

Ai noites de Assomada

da ventania e da amnésia

erigidas sobre os olhares

como monumentos

à miséria 

 

Lembras-te, Calú

das piscinas pútridas de vermes

onde íamos lavar

o olor das tristezas

e o odor do moribundo vento

doudo de dor

nas noites longas de Assomada?

 

Ai noites de Assomada

de adivinhas e presságios

inaudíveis

na noite de vivos guerreiros

de lobos e raposas imaginários

de polícias e ladrões

em acrobacias

de braços pernas

e pedras baças

esbracejando

lívidas

 

Ai noites de Assomada

Do suor escorrendo sob a fonte das estórias

Do medo dos pálidos deuses decapitados

Nas noites longas de Assomada

 

Lembras-te, Norberto

das vozes áfonas

loucamente  áfonas

sob os auscultadores do silêncio

sobre o corpo afómico

das buganvílhas de lábios vermelhos

nascendo

nas noites longas de Assomada?

 

Todos nós éramos pedras sentadas

sondando os destinos deste nosso Destino

destinos inertes destinos pétreos

 

Todos éramos almas de cinzas

e prenúncios de espumas

carregando as sombras da noite

a amargura da fome

nos cabelos crespos

e no cerne do coração

 

Todos éramos pesadelos de maremotos

e sonhos de Encantadas

nos regaços de Senhora-Mãe

prendendo as cheias

prendendo o céu

com o salitre da alma

com  as mãos estendidas

sobre o mar cizento

e as noites longas de Assomada

 

Lembras-te, Kuskus

das lanternas

noites sem lua

das lanternas

noites sem fôlego

das lanternas

nos rumores dos coqueiros

gemendo a música

das viúvas

no eco de Assomada?

 

Noites de Assomada

Noites deslizando

nas canções de Djungu longínquo

na superfície

nos lábios

das nossas vidas

Noites tropeçando

Nas armadilhas da Noite

 

Noites de olhos vendados

Noites de amor

Noites de desespero de tanta Noite

Noites nos ramos das velhas lemba-lembas

Noites na árvore saheliana

no nervo saheliano

Na frescura-nervo

De outros hemisférios

 

Pedras várias Suores vários

no breu de Gil-Bispo

em Santiago

Noites em marcha

durante a Noite infalivelmente violada

orgasmo de pés orgasmo de violas

orgasmo no ritmo no grito da mulher

 

viúva de risos viúvos da alegria

viúva dos caminhos

viúvos de caminhantes

da noite viúva

na noite solitária do cemitério dos prazeres

Noite espantada

Na mudez das vozes paradas

Proscritas perscrutando mais além

 

Noites horizontalmente esticadas

no silêncio dos castiçais

de pavio enorme

multiplicando

as explosões de luz

 

Noite clara

Noite visível n madrugada

No canto alegre do galo

Estridente

Ridente

De repente em manhãs verdes

 

Lembras-te,  Benny irmão

Lembram-se, mosinhus

lembram-se, ainda

das Noites de assomada

de Assomada

 

Noites longas

E sua nocturna e diária

Esperança

No cantar explosivo

- explosão de sóis –

e nas esporas guerreiramente

diurnas

do Galo di nha Somada?

 

Lembras-te ainda, Dhigo?

 

 

                                                                  Leipzig, 14/15-07-82

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA, jurista, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico. Nasceu no sítio de Pombal, Concelho de Santa Catarina, ilha de Santiago, Cabo Verde (1960). Reside actualmente em Lisboa. Licenciado em Direito pela Universidade Karl Marx, de Leipzig, e pós-graduado em Ciências Jurídicas e em Ciências Políticas e Internacionais pela Faculdade de Direito de Lisboa.

Desempenhou as funções de técnico superior em vários departamentos governamentais e de Director do Gabinete de Assuntos Jurídicos e Legislação da Secretaria-Geral do Governo.
Associado a diversas iniciativas culturais em Cabo Verde, como o Movimento Pró-Cultura (1986), o suplemento cultural Voz di Letra do jornal Voz di Povo (1986-1987) e a revista Pré-Textos; director da revista Fragmentos (1987-1998); co-fundador da Spleen-Edições (1993) e dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (1989-1992/1998). Participação regular em colóquios, em diversos países, como Senegal, Cuba, Bélgica, Brasil, Angola, Portugal, Holanda, Suíça, Moçambique; colaboração assídua em jornais e revistas literárias e jurídicas, com destaque para Fragmentos, Pré-Textos, Direito e Cidadania, Lusografias, A Semana, Liberal-Caboverde. Representado em diferentes antologias poéticas estrangeiras.

Organizou Mirabilis – de Veias ao Sol (Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e O Ano Mágico de 2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-Verdianas (2008).

Publicou: livros de poesia – À Sombra do Sol, I e II, (1990); Assomada Nocturna (1993) e Assomada Nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005); ensaio: separata – Orfandade e Funcionalização Político-Ideológica nos Discursos Identitários Cabo-Verdianos (2007).

Utiliza os nomes literários Nzé di Santý Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana (crónica literária e prosa de ficção).