Nasci numa aldeia
à sombra de um sobrado
e da austera penumbra
das montanhas
Ainda criança
galguei a orografia de
Assomada
e fiz-me árvore do
planalto
O serpentear das
estradas
fez-me desembocar no mar
junto a uma cidade
efeitiçada de azul e
murmúrio
De costas para o mar
Insinuei-me
- para além da ilha -
na lenta e transparente
caminhada das nuvens
para beijar loucamente
a neve com odor a carvão
de Leipzig
Hoje sei que sou
um simples signo de Adão
e Eva
e do seu éden pétreo no
Piku Ntoni |
Lembras-te, Manú
Do corpo longo dos
karapatis floridos
Do corpo longo das
canções de crepúsculo
Do redemoinho de vento e
do diabo
Nos campinhos de Achada
Riba?
Todos nós éramos bolas
velozes
Circulares de beleza
Rodopiando faca aos
infernos
Todos éramos elegres
espectros
Ardendo vegetalmente
ante o mistério das plantas
|
Todos nós éramos pedras
sentadas
sondando os destinos
deste nosso Destino
destinos inertes
destinos pétreos
Todos éramos almas de
cinzas
e prenúncios de espumas
carregando as sombras da
noite
a amargura da fome
nos cabelos crespos
e no cerne do coração
Todos éramos pesadelos
de maremotos
e sonhos de Encantadas
nos regaços de
Senhora-Mãe
prendendo as cheias
prendendo o céu
com o salitre da alma
com as mãos estendidas
sobre o mar cizento
e as noites longas de
Assomada |
Pedras várias Suores
vários
no breu de Gil-Bispo
em Santiago
Noites em marcha
durante a Noite
infalivelmente violada
orgasmo de pés orgasmo
de violas
orgasmo no ritmo no
grito da mulher
viúva de risos viúvos da
alegria
viúva dos caminhos
viúvos de caminhantes
da noite viúva
na noite solitária do
cemitério dos prazeres
Noite espantada
Na mudez das vozes
paradas
Proscritas perscrutando
mais além
Noites horizontalmente
esticadas
no silêncio dos
castiçais
de pavio enorme
multiplicando
as explosões de luz
Noite clara
Noite visível n
madrugada
No canto alegre do galo
Estridente
Ridente
De repente em manhãs
verdes |
JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA, jurista, poeta,
ensaísta, analista e comentador radiofónico. Nasceu no sítio de Pombal,
Concelho de Santa Catarina, ilha de Santiago, Cabo Verde (1960). Reside
actualmente em Lisboa. Licenciado em Direito pela Universidade Karl
Marx, de Leipzig, e pós-graduado em Ciências Jurídicas e em Ciências
Políticas e Internacionais pela Faculdade de Direito de Lisboa.
Desempenhou as funções de técnico superior
em vários departamentos governamentais e de Director do Gabinete de
Assuntos Jurídicos e Legislação da Secretaria-Geral do Governo.
Associado a diversas iniciativas culturais em Cabo Verde, como o
Movimento Pró-Cultura (1986), o suplemento cultural Voz di Letra do
jornal Voz di Povo (1986-1987) e a revista Pré-Textos; director da
revista Fragmentos (1987-1998); co-fundador da Spleen-Edições (1993) e
dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (1989-1992/1998).
Participação regular em colóquios, em diversos países, como Senegal,
Cuba, Bélgica, Brasil, Angola, Portugal, Holanda, Suíça, Moçambique;
colaboração assídua em jornais e revistas literárias e jurídicas, com
destaque para Fragmentos, Pré-Textos, Direito e Cidadania, Lusografias,
A Semana, Liberal-Caboverde. Representado em diferentes antologias
poéticas estrangeiras.
Organizou Mirabilis – de Veias ao Sol
(Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e O Ano Mágico de
2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura
Cabo-Verdianas (2008).
Publicou: livros de poesia – À Sombra do
Sol, I e II, (1990); Assomada Nocturna (1993) e Assomada Nocturna –
Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005); ensaio: separata – Orfandade e
Funcionalização Político-Ideológica nos Discursos Identitários
Cabo-Verdianos (2007).
Utiliza os nomes literários Nzé di Santý
Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada
(poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana
(crónica literária e prosa de ficção). |