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José Roberto Aguilar: O divino artista brasileiro
J
acob Klintowitz

O ar estava impregnado de palavras não ditas, pensamentos inconclusos, gestos contidos. Também a poeira suspensa que a luz filtrada nos vidros sujos da janela revelava era uma presença sonhadora e opressiva. Olhávamos um para o outro e tudo parecia nos separar. Eu estava com um terno beije escuro, o paletó de seis botões trespassado, camisa branca, gravata italiana de seda em tons de marrom e verdes e o José Roberto Aguilar vestia uma calça de jeans desbotada pelos anos, uma camiseta branca amarelada pelo depósito incomensurável de salpicos de pigmentos, de terra e, tudo levava a crer, alguma contribuição expressiva de mofo. A pele do meu rosto estava lisa da barba recém-feita, um pouco emaciada de inquietas noites mal-dormidas. Em Aguilar o rosto era um mapa de incógnito território, habitado aqui e ali por caprichosos tufos de barba que cresciam onde melhor lhes aprouvessem. Ele estava sentado à uma escrivaninha de tampo arranhado, de longínqua memória castanha, e eu, de pé, indeciso e pouco confiante numa cadeira que lembrava o espólio de uma arruinada família de arrabalde. Tudo parecia nos separar, mas nós nos olhávamos com manifesto interesse. E o José Roberto Aguilar, com aquele fluxo de espontaneidade que o torna divertido, irritante e escorregadio, as frases carregadas de erres, como se tivesse sido transplantado da Alemanha, explodiu: Jacob, você é um clássico!

Acho que este encontro foi em 1999, na Casa das Rosas, São Paulo, centro cultural estadual onde, incrivelmente, Aguilar era o diretor. Mas o ano não parece fazer muita diferença quando tratamos de José Roberto Aguilar, pois ele tem o curioso dom de transmitir a sensação de que o tempo não existe. Bom, em nome da verdade, o Aguilar nunca afirmou isto. Mas precisava?

Contudo, no oceano infinito de enigmas afirmativos que emana de José Roberto Aguilar, há mais este: ele se tornou o representante do Ministério da Cultura no Estado de São Paulo. E isto, não sei por que, mas talvez vocês saibam, evocou na minha mente o seu livro de 1981, “A Divina Comédia Brasileira”.

A capa da “Divina...” é uma chave mágica que abre o entendimento do assunto. Eu creio nisso. É uma fé arraigada que tenho. O fundo da imagem é uma pintura de Aguilar, com um número infinito de cores, texturas e tintas escorridas diretamente da bisnaga ou de uma lata com furos. A tela não tem alto e baixo, lado certo, sentido geométrico ordenador: o suporte inteiro é percorrido por traços, riscos, pingos, massas de pigmentos e obscuras frases cursivas. Lembra até a exaustão a pintura do americano Jackson Pollock (1912-1956), o primeiro a utilizar a lata cheia de tinta com furos e o despejo aleatório de pigmentos numa técnica que ficou conhecida como dripping. Pollock passeava sobre a tela carregando as latas furadas e as tintas caiam sobre a tela. O método furioso de Pollock ao pintar recebeu o nome de action painting. No plano da frente da capa da “Divina...”, os letreiros, a lettera, estão em preto sobre recortes brancos. Estes recortes parecem suportes oriundos de rasgos na tela. A cada rasgão um pedaço de branco. Alguma coisa de apresentação cinematográfica. E, comandando o espetáculo, o próprio José Roberto Aguilar de terno e colete branco, os braços levantados com se discursasse ou cantasse, a boca aberta. E as suas destacadas mãos estão envoltas por uma massa informe negra, alguma coisa preta. No início, pensei que fossem luvas de boxe, mas a lente de aumento revelou que são sapatos. Aí está uma imagem que não passa desapercebida: a roupa branca na antiga tradição do Brasil tropical, a pintura pollockiana apropriada antropofágicamente, a boca enorme e aberta, discursiva, anuncia o evento, canta ou grita. E as mãos calçadas com sapatos. Surreal? Dadaísmo? Ou, mais apropriado ainda, uma barroca esfera glauberiana gigante e girante a nos dizer alguma verdade sobre o ser nacional. Observem como certos mistérios aguilarianos nos levam a responder com delírios.

Deve ser destacado que a imagem de José Roberto Aguilar não só preside a capa da “Divina Comédia Brasileira”, como o José Roberto Aguilar é o próprio roteiro do livro. Nada no seu livro, e nos livros subseqüentes, se passa longe da sua fotografia, do seu gesto, dos seus pensamentos, dos seus desejos, das suas memórias, das suas sensações. E, nem neste livro, nem nos outros que lhe sucederam, ou nas suas pinturas, ou nas suas performances, alguma coisa fica minimamente distante da sua imagem, do seu retrato, das suas emoções. Não há distanciamento reflexivo, mas um emergir infinito. Nunca encontrei nesta minha já longa existência um narcisista mais glorioso do que José Roberto Aguilar.

Neste fluxo contínuo, neste fluir permanente de si mesmo, Aguilar tornou-se pintor famoso, eventual escritor de estilo espontâneo, oceânico e inventivo (espontâneo ? sabe-se-lá o que isto realmente quer dizer), e band leader de um grupo chamado “Banda performática” que costuma produzir sons assustadores.

É possível que o brilhante intelectual Haroldo de Campos, em 1994, tenha percebido quase tudo quando escreveu: “O Aguilar escritor é uma projeção feliz do Aguilar-pintor-escultor-performista. Tem achados que são peculiares à sua verve multimidiática. Tem giros oníricos que brotam, fascinantes, de seu imaginário. Sabe colher o imprevisto e a inovação”. Como era seu hábito, Haroldo de Campos entendeu e sintetizou o cosmo, mas temos que concordar que, também no seu caso, a resposta tem qualquer coisa dos ouros e dos círculos enovelados do barroco.

De uma maneira ou outra, impulsionado por esta lava incandescente que presumimos existir e se expandir, ou fertilizado pela chuva de ouro de Zeus, o fato verificável é que existem poemas e epígrafes de Aguilar que seria uma pena perder. É um bom exemplo este poema surpreendente sobre Jack, o estripador, no qual recolhe o mito moderno, a memória do horror de um matador de mulheres humildes, acrescido da inabalável convicção sobre a fácil e universal luz interior, tão comum na década de 60. Ele merece ser lido. É um poema publicado no livro “Tantra coisa”, editado em 1999.

“Jack, the Ripper

Iluminou-se.

Dentro da mulher

Rasgada

Só tinha

Luz.”

Ou este outro, mistura do poema-piada modernista com a remota lembrança do ritmo do Haiku, do seu melhor período (a partir de 1271), em que o pintor-poeta delicadamente sugere encontros, seduções, entregas. A associação do som do emissor mecânico (telégrafo, lápis, martelo, êmbolo) com a pulsação cardíaca, enriquecida pela idéia do corpo-emissor-receptor, paisagem onde tudo se passará, torna este poema exemplar. É quase um clássico, eu poderia devolver ao pintor-poeta, se a nossa época produzisse clássicos.

“Corpos em código Morse

tique taqueiam

convites”

Para facilitar ao leitor e poupá-lo de correr para a estante, coloco logo, ao menos, dois haikus. Lembro de Arakida Moritake (1472-1549):

“Eu penso: as flores caídas

retornaram aos seus ramos.

Mas não! São mariposas.”

E de Bashõ (1644-1694), o mestre mais conhecido no ocidente:

“Belo ainda na manhã,

O velho cavalo,

Sobre a neve.”

Eu também concordo, não é idêntico, não é exatamente igual, mas a comparação de um artista pop, como é Aguilar, com os mestres chineses e japoneses é irresistível. A extraordinária gravura japonesa, que tanto influenciou na invenção do impressionismo, tratava do cotidiano, da vida das pessoas comuns, das pontes e das paisagens. A crônica do homem no planeta. Desde o cubismo a arte utiliza os objetos cotidianos como assunto e, com a pop art, chegamos numa espécie de entronização da banalidade. Não se pode esquecer que estamos tratando de manifestações estéticas diferentes, mas há em comum este interesse pela simples existência. No caso destes poetas que buscavam a essência do sentimento, a sua vida de andarilhos, de homens na estrada, eles antecedem a atitude da geração beat, a liberdade na estrada, em rota, sem apegos à propriedade.

O que encantou o ocidente na descoberta do haiku é o vislumbrar a poesia em estado puro, despido da descrição e narração intelectual. A poesia como um ato de percepção imediata. Na gravura japonesa, que esteve na raiz da revolução estética ocidental, o aprendizado se passou da mesma maneira, na verificação da visualidade em si mesmo, no ser que é, na ausência da estrutura intelectual. O que interessa nesta associação de Aguilar com mestres de tal porte (já quase me arrependo de ter iniciado esta análise) não é a comparação da qualidade poética ou das imagens, o que seria injusto com Aguilar, exigir tanto dele, mas perceber que o artista também procura a revelação do momento, o inesperado, o fluxo de energia. O que explica muito do processo de sua pintura.

O jornalista Edwaldo Pacote, uma espécie de mestre da simplificação, com a sua qualidade e faro do repórter que circunscreve o factual, disse que “...Aguilar pinta o caos de uma maneira organizadamente desorganizada.” E mais não disse e nem lhe foi perguntado. A crítica de arte Sheila Leirner, em 1981, também estava a procura do entendimento do peculiar método:“A linguagem de Aguilar, no entanto, pelo fortíssimo sentimento de identidade individual, talvez, não se prenda ao conceito. Vulcânica, dionisíaca, crítica, opulenta como na pintura, rompe as amarras do discurso e oferece um jorro delirante de imagens. Na sua convicção anárquica e surrealista, ele é o herdeiro do dadaísmo, o artista sempre criança da “revolução sem revolução”.

Para Aguilar é tudo muito natural, como se pode perceber na sua aventura em “Hércules Pastiche”:

“Me aproximo do bar e pergunto ao garçom:

Quem é aquele homem ?

Ah, responde, ele é

A ORELHA DE VAN GOGH.”

O método Aguilar de criar arte? Evidente, é o sistema Orelha de Van Gogh.

O extraordinário físico brasileiro Mário Schemberg, ativo crítico de arte, colocou José Roberto Aguilar no realismo mágico. E como o realismo mágico contém este elemento de irracionalismo latino-americano como critério de verdade em oposição ao cartesianismo europeu, há nexo no conceito do professor. O instinto redentor em oposição ao planejamento salvador. Não vai muito bem o nosso mundo, não é ?

Eu tenho a intuição de que Mautner é a imagem de Aguilar no espelho. Erudito e visceral, o visível paradoxo de Jorge Mautner o transformou no “gauche” mais famoso do país. É justo que, nesta maré de depoimentos, esteja o dele, feito neste ano de 2005, a respeito do nosso pintor, mesmo que desconfiemos que seja autobiográfico:

“A pintura de Aguilar é um permanente desvelamento de segredos e mistérios que ao serem decifrados criam imediatamente mais enigmas, mistérios, vertigens, iluminações. Em todos os momentos Aguilar borda estrelas do Cruzeiro do Sul em suas telas, sejam ocultas ou manifestas. Percorre a sua obra a mesma vibração da música, da música da alma e das estrelas, a pulsão e a pulsação de todas as dissonâncias transformadas em serena calmaria de amor e paz cheias de vertigem de belezas rodopiantes”.

Fiquemos, para terminar, com as manifestações verbais do pintor. A primeira, engraçadíssima, uma nova versão do tradicional tema do “pintor e sua modelo”, que já nos extasiou em tantos pintores, entre eles o mago Pablo Ruiz Picasso.

“Fora com os intermediários.

O pintor foi chutado

Para escanteio.

O affaire entre a modelo e as tintas

Foi total.”

O segundo poema é uma manifestação sensual de José Roberto Aguilar. Nele o poeta é elegante ao descrever o rio leitoso sobre o corpo feminino nos deixando entrever a chama que terá incendiado aquele cenário e é comovente aos nos apresentar Caronte, o barqueiro das almas, perdido de sua missão de condutor. Eros é maior do que a morte.

“Um rio leitoso

passa

pelo corpo

da moça

enquanto

Caronte

tarado

rema

esquecido

das margens.

 
 
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