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Henrique Dória...
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Eu deveria passar por mim |
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Eu deveria passar por mim
Montado num cavalo amarelo E dizer-me Adeus Adeus Adeus. Mas
sempre me repugnaram os poderosos Castrados de olhos duros Que se
alimentam de carne e sangue Dobrados nas suas bigornas.
Então
esta noite sentei Belzebu nos joelhos Cortei-lhe o sexo com sílex
solar Injuriei-o amarrei-o À cadeira de ferro ardente E tudo
porque ele comera o meu coração.
Ando agora à procura de Deus:
Isto é ridículo Como são ridículos as trevas e os pulsares Os
falcões e as fumarolas Deus que me ama tanto até me tornar Em pó e
alimento dos santos
A mim o onagro a corça o touro E o tigre
branco na noite solitária O tigre de uivo branco Que há-de morrer
na neve Árvores em volta em vez de Cruzes entre céu e céu
Vorazes cânticos do vento velho Para a justiça pueril da morte.
A mim o grito longínquo da baleia Choro sobre esperma perdido
A economia cruel do mar Entrando e saindo da idade fria Das águas
sobres os icebergues Dentro das montanhas prodigiosas o seu feto O
corpo com os seus quentes canais vermelhos Por onde passam as ordens
dos anjos.
A mim o grou coroado o grifo O sabre que o suicida
engole. Tem asas de serafim a naga Que surge à porta do sul
Cuspindo o astro solar para Ocidente e Oriente Para o Nadir e o Zénite
majestosos A naga que o garuda engole. A mim a palavra dançada – a
palavra perdida.
Deus e Belzebu são um só A cintilar sobre as
cúpulas. Com eles estão a onça o leão e a loba Mas também as
máquinas de devastar Que serão aniquiladas depois De estropiadas
dobradas amassadas sobre si Até suspirarem pela sombra Até
enlouquecerem.
E os poderosos sentindo-se inexpugnáveis Nas
suas cidades de aço Na sua carne de bronze brilhante Nos seus
obeliscos de ónix Fazendo sexo com os céus Capazes de engolir
brasas Com as suas portas ávidas Com as suas bocas centro de
furacões
Também eles sucumbirão Com os mares e os meteoros
A erva verde as forragens os manjares insípidos E as gemas dos dedos
Porque eles são o eco de um uivo e não o sabem Porque eles são
de nada e não o sabem.
Desesperados hão-de deitar fogo à floresta
Lançar glaciares contra as labaredas Mas restar-lhes-ão as cinzas
a soluçar na noite Uma paródia selvagem de negro e negro Que o
Nada lhes saberá explicar.
A todos o incêndio de tudo Até dos
átomos ferozes Que eternamente se pensaram a devorar A estrada de
leite dos céus Até os átomos serão cortados Pelo gládio do Nada
sagrado Até os Deuses dez vezes serão cortados Pela foice em fúria
do ceifeiro do tempo.
HENRIQUE DÓRIA |
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