1. Quantas vezes
comecei por ali
pela janela entreaberta
cruzada por uma leve penumbra
- Deneb ou outra estrela
da Cassiopeia, ou um planeta
errante
Quantas vezes
sem saber que dizer, sem poder
respirar a valer
inventei ruídos ao longe
pus gente a viajar à beira de caminhos
que nem sei se existem Quantas vezes
escarneci fiquei sério
e digo isto sem troçar
deixei a mão direita sozinha
acenando entre particípios e conjuntivos
Quantas vezes quantas vezes
perdi de vista a morte a vida
Quantas vezes
cheio de sono farto de verbos
peguei em sonhos numa vassoura
fugi assustado, andei de barco
e ao acordar enchi-me duma imperiosa
ternura num suspiro
e fui pelas ruas bocejando
trocando os pés moderadamente
como se estivesse ligeiramente louco
ou os poemas fossem apenas simulacros.
2. Agora vou pensar um bocado no “Anjo Guardião
Aparecendo a Maria” da basílica de San Genaro
de Piero de la Francesca, como que por acaso
Uma pintura sem arabescos, aparentemente
sem semelhanças com outra que vi – e no entanto
tão igual! – num museu de Évora durante a minha
primeira viagem a Portugal. Almoçara
num famoso restaurante de Lisboa
Como a cidade estava bela cheia de vento
e a minha bendita gravata de riscas que a
Jeannette me oferecera devia
fazer um vistão
e eu rapava o prato miraculosamente
e então a Jeannette disse-me: repara! E eu
olhei
Um senhor alto, de óculos reluzentes
olhei entre o assado e o doce
Era, esclareceram-me, um famoso escritor
uma pessoa de qualidade, romancista também
com putices finas pelo meio, um homem
de confiança de Sua Excelência enfim
antes da fruta, antes do brandy. A Jeannette
dissera-me: repara! E eu olhei, eu
olhei. Vírgula, dois pontos, aspas
traço e sublinhado.
A gravata está pendurada
no trinco de uma porta. Entretanto
como passaram vários meses
já digeri o assado, a sopa, o doce
o charuto que o Pierrot me deu. Doravante
- lembro-me que pensei –
vou passar a comer em modestas tascas
não fumar
mijar sei lá se calhar à socapa atrás
dum arbusto.
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