Perdi uma das casas
da minha infância
Pombos por sobre as árvores
onde é agora um hipermercado
Na rádio, Hillary St.Georges
entoa uma ária do “Rigolleto”.
O meu pai morreu com um livro de Tchekov
sobre a mesa-de-cabeceira
onde um lenço e uma tesoura de unhas
aguardavam o último arranco
O meu tio, que me ensinou a espirrar
- fazia-o sem ruído, como um velho soldado –
morreu também
e a prima que me acalentara as manhãs de domingo
foi também desta para melhor. E agora
Olho ao longe o pequeno subúrbio
a minha casa antiga está entre outras
Será a que inicia a rua frente à estrada
a segunda, a terceira? Não creio que seja a de portas
azuis, com um pezinho a condizer, ou aqueloutra
um pouco fanada, com uma motocicleta junto ao muro.
A mãe, pobre dela, ausentou-se
vive agora num bairro periférico
e a sua memória flutua
“Filho, lembras-te da figueira?”
“Meu rapaz, recordas-te do perdigueiro castanho?”
E é só a isto que chega
enovelando rostos, quando muito uma expressão
das vizinhas que iam ao baile.
Por isso
sou já um pouco como aqueles velhotes relampados
de sapato engraxado, estralejante
comendo bolos-de-rei com um cafézinho
na “roulotte” de comes-e-bebes
perto do andar que hoje habito. Tenho já
como eles
a pupila funda
a garganta presa
o braço anguloso
de quem foi desapossado de algo que era perene
e agora é a fome da terra uma linguagem secreta. |