GERARD CALANDRE

VESTÍGIOS

Trad. Nicolau Saião

VESTÍGIOS - INDEX
NÉON

Joanica, a tal

que na escola se parecia com a Henriqueta

encontrei-a há dias. Ali por perto morara Yannis Xenakis

a rua desembocava numa praça com um jardim.

A História tem uns olhos enormes

torna possível quase tudo – eu diria tudo, mas

algo se dissolve sem deixar os grandes ciclos da vida

Respiração obstinada

Trocámos dois dedos de conversa

e eu nas tintas. A Joanica

tem uma maneira de olhar

Um silencio

Uma voragem

Quase tudo se pensa saber e no entanto

Ao mesmo tempo lembrei-me que ela casara com o Julião

um excelente artolas Químico numa fábrica de perfumes

e perguntei “O Julião?” e enquanto ela falava eu via

coisas antigas; um globo terrestre na sala de aulas

a obscuridade do jardim na noite de Verão

Às vezes as coisas leves fragmentam-nos, fazem-nos rodar

Enfim, uma história de cornos e putas

importação-exportação. A praça esvaziava-se pouco a pouco

e era verdade

Até que os apanhei” dizia ela e era

verdade Em redor passava alguma gente estranha

O tanque que outrora tinha uma figueira por cima

Um corpo que não se move e se dispersa e se transforma

Atirei-lhe enquanto lhe dava um beijinho na face

“Então até outro dia. E mantém a calma, ouviste?”

as espessuras da existência Apertou-me a mão ficou

a olhar para mim

 

A Joanica

tinha e tem uns grandes olhos verdes Algumas

vezes me deixou copiar Andava muito devagar, gostava

de História e era religiosa praticante. Eu tive por ela

uma espécie de ternura. Não posso explicá-lo. Foi assim.

A sua preocupação quanto àquele assunto impressionou-me.

Aparece desaparece Viro-me é um transeunte anónimo

perdão diz-me Todas as significações possíveis

 

Durante algum tempo

vejo distintamente muitos gaiatos quietos Em filas

aprendo pouco a pouco a lembrar-me. Cysne

ou Lyra, Cassiopeia Um pouco mais para o norte um clarão

A cidade e perto árvores que crescem

Muitos rostos indistintos à espera, observando, observando.

Gérard Calandre nasceu em 1952, na Bretanha, França. Viveu na Itália, leccionando na cidade de Messina. De formação científica, tem-se mantido afastado do mundo das Letras. Autor do livro Vestígios, traduzido por Nicolau Saião e de textos esparsos sobre o seu ramo profissional. Visitou Portugal em 1992 e 1997. Após o falecimento de sua mulher foi viver para o Canadá francófono.

Tem colaboração nas revistas “Diversos” – dir. José Carlos Marques, “Bicicleta” – orientada por Manuel Almeida e Sousa, “Agulha”(Brasil) – dir. Cláudio Willer & Floriano Martins, etc..

NS