Num ensaio intitulado L’oeuvre de Julien Green
une poétique du mal, Otília Pires Martins, Professora Associada com
Agregação do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de
Aveiro, proporciona-nos uma profunda análise ao universo literário da
vasta obra de Julien Green, onde a escrita se assume como o caminho para
a unidade de um ser dramaticamente dividido e atravessado pelas mais
diversas dicotomias, a começar, como evidencia a autora, pela
duplicidade linguística, pelas duas «pátrias», duas religiões, para além
da luta constante entre o instinto e a religião, a sexualidade e a fé, o
bem e o mal, as trevas e a luz.
É, precisamente, a dilaceração entre todas estas
forças antagónicas que se procura e analisa neste aturado
trabalho de investigação, pois, como é referido:
“C’est dans
la déchirure provoquée par cette dualité qu’il nous faut chercher la
genèse de la puissance dramatique de l’oeuvre greenienne, de sa violence
et de sa folie.”
(p.27).
Green é apresentado, desde o início, como
um “pintor da condição humana”, um visionário, cuja obra se assume,
simultaneamente, como testemunho e apelo metafísico, oscilando entre o
real e o fantástico, o visível e o invisível.
Assim, na primeira parte, intitulada “Le
mal moral ou l’angoisse d’exister”, são analisados os vícios e paixões
caracterizadores das personagens que habitam o “inferno greeniano”(a
avareza, a curiosidade, a indolência). É ainda focada a poética do
espaço no imaginário deste autor, partindo de lugares reais, onde vemos
inscrever-se sub-repticiamente, o
elemento fantástico, assumindo, por exemplo, a casa uma configuração
maléfica, para se enveredar por um maravilhoso eivado de
elementos integradores altamente simbólicos: a noite, a lua e a água.
Na segunda parte, intitulada “Le mal
charnel ou l’obsession de l’impur”, são desenvolvidos diversos aspectos
como a obsessão e a sacralização da beleza, a homossexualidade, a
sensualidade, a violência, o horror ao pecado, a obsessão do impuro, a
imagem da feminilidade maléfica. Deste modo se evidencia o combate entre o bem e o mal, o corpo e o espírito,
a sensualidade e a fé.
Na terceira e última parte (“Le mal
metaphysique ou la présence du demon”), percorremos os meandros
configuradores da constante presença satânica que, através da oposição
com Deus desagua numa ambivalência antitética.
O leitor tem assim o privilégio de
percorrer e descobrir o “dantesco” reino de silêncio e solidão de Julien
Green interpenetrado pela violência, pelo ódio e o sadismo,
mas também por “gritos” (de revolta, de recusa ou de simples
pedido de ajuda). Nesse universo ficcional, a escrita, subterfúgio a que
recorrem inúmeras personagens, (sob forma de uma real mise en abyme)
desempenha uma função libertadora, catártica, assumindo-se como um modo
de evasão, fuga e purificação, através da qual, o mal, representado
pelos mais diversos monstros, poderá ser exorcizado.
Após uma
análise rigorosa, profunda e concisa, tecida através de um notável
estilo ensaístico, é sob a égide do humanismo que L’oeuvre de Julien
Green une poétique du mal termina, visto que, neste
universo aparentemente aterrador é possível divisar a luz, as
marcas do Bem, da grandeza, como salienta a autora:
“L’oeuvre
greenienne met en évidence les problèmes que pose l’existence du Mal
mais, de même que l’ombre prouve l’existence de la lumière, l’angoisse
devant la décheance laisse deviner une nostalgie de la grandeur.“
(p.329).
Assim, é divisando o que se encontra para
além da aparência, o tal sentido oculto onde reside a própria essência
(“o essencial é invisível aos olhos” como afirma Saint Exupéry no seu
Principezinho”) que a obra greeniana “nous montre l’aventure
extraordinaire, humaine et spirituelle, d’un homme en quête de Dieu”
(p.330).
Em suma, após termos sido guiados pelos mais recônditos e
labirínticos meandros da obra de Julien Green, somos impelidos a
penetrar, através da sua leitura (ou releitura), num universo fortemente
marcado por forças ambivalentes e antitéticas, remetendo-nos, assim,
para Nietzsche que afirma que “o homem precisa daquilo que em si há de
pior se pretende alcançar o que nele existe de melhor.” |
Dora
Maria Nunes Gago nasceu em S. Brás de Alportel a 20 de Junho de 1972.
É
licenciada em Ensino de Português e Francês pela Universidade de Évora,
mestre em Estudos Literários Comparados e doutorada em Línguas e
Literaturas Românicas pela Universidade Nova de Lisboa.
Foi
Leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai) no ano lectivo
2001/2002 e é professora na Escola EB 2,3/S Dr. Isidoro de Sousa em
Viana do Alentejo.
Publicou Planície de Memória (1997), Sete Histórias de Gatos
(em co-autoria com Arlinda Mártires – 1ª ed. 2004, 2ª ed. 2005); A
Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007);
Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de
doutoramento) -FCT / Fundação Calouste Gulbenkian, 2008 - e tem artigos,
ensaios, poemas e contos dispersos por antologias, livros, revistas e
jornais portugueses.
Além
disso, tem apresentado diversas comunicações em Colóquios
Internacionais, encontrando-se a desenvolver, actualmente, mediante uma
bolsa da FCT, o projecto de investigação pós-doutoramento «Uma
cartografia do olhar: visões e ecos de Espanha e do Brasil na Literatura
Portuguesa do século XX (1927-1999), orientado pela Prof. Doutora Otília
Pires Martins do Departamento de Línguas e Culturas da
Universidade de Aveiro. |