Agarrei-me ao banco quando
o autocarro parou bruscamente, numa sinfonia de travões e pneus gastos.
Já sabia que viajar no 121 (um verdadeiro «clássico», que há muitos anos
percorria Montevideu de lés a lés), era quase sempre uma aventura. Esse
autocarro assumia-se como um mosaico cultural e social: nele viajava
todo o tipo de gente - vendedores, artistas, carteiristas, intelectuais,
operários, reformados...
Àquela hora o ar era
irrespirável. Enlatados, os passageiros tentavam equilibrar-se para não
tombarem no chão. Nesses momentos, às vezes, ainda entrava mais alguém,
desencadeando insultos, raivas adormecidas. Foi nesse instante que ele
apareceu. Era jovem, moreno, alto, magro. Embora sentisse que ninguém o
escutaria, começou por contar a sua história simples: abandonara há anos
a aldeia semeada perto de uma floresta, na Bolívia, onde nascera, pois,
certa noite, num sonho, uma voz sussurrara-lhe que deveria rumar ao sul,
porque em Montevideu encontraria um grande amor e o seu talento
desabrocharia como alva flor de jasmim na primavera. Por isso, ali
estava: disponível para a vida e sobretudo para a música. Acariciou a
guitarra e soltou a voz pujante. O silêncio desceu sobre os passageiros
dominados pela expectativa. Foi então que a magia nasceu e se espalhou:
o motorista começou a bater no volante, revelando o talento e a vocação
oculta de percussionista, o revisor acompanhou-o com a sua voz...
O autocarro seguia o seu
itinerário: percorria as ruas estreitas da Cidade Velha, mas ninguém
saía nas paragens que se iam sucedendo. Misteriosamente hipnotizados,
todos esquecemos o cansaço, o desconforto, as desilusões e a pressa. O
dia de trabalho havia terminado e o tempo ficara suspenso, cristalizado
na música e na voz que enfeitiçavam: um momento além-tempo e além-vida,
irrepetível, que em nós habitou, feito de sonho e música.
Dora Gago |
Dora
Maria Nunes Gago nasceu em S. Brás de Alportel a 20 de Junho de 1972.
É
licenciada em Ensino de Português e Francês pela Universidade de Évora,
mestre em Estudos Literários Comparados e doutorada em Línguas e
Literaturas Românicas pela Universidade Nova de Lisboa.
Foi
Leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai) no ano lectivo
2001/2002 e é professora na Escola EB 2,3/S Dr. Isidoro de Sousa em
Viana do Alentejo.
Publicou Planície de Memória (1997), Sete Histórias de Gatos
(em co-autoria com Arlinda Mártires – 1ª ed. 2004, 2ª ed. 2005); A
Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007);
Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de
doutoramento) -FCT / Fundação Calouste Gulbenkian, 2008 - e tem artigos,
ensaios, poemas e contos dispersos por antologias, livros, revistas e
jornais portugueses.
Além
disso, tem apresentado diversas comunicações em Colóquios
Internacionais, encontrando-se a desenvolver, actualmente, mediante uma
bolsa da FCT, o projecto de investigação pós-doutoramento «Uma
cartografia do olhar: visões e ecos de Espanha e do Brasil na Literatura
Portuguesa do século XX (1927-1999), orientado pela Prof. Doutora Otília
Pires Martins do Departamento de Línguas e Culturas da
Universidade de Aveiro. |